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Estaduais para quê?
- Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli
Os campeonatos estaduais de todo o país terminaram e não deixaram saudade. Previsíveis. Enfadonhos. Com raríssimas revelações. Outrora mexiam demais com os torcedores, hoje a maioria desses torneios não passa de lembranças envelhecidas.
Há quem tente explicar os Estaduais de hoje como espécie de pré-temporada para preparar os elencos para as disputas do resto do ano, que vêm logo em seguida. A decisão de publicar este texto somente agora, com os diversos torneios que realmente importam já em curso, foi uma tentativa de comprovar se há mesmo algum efeito visível dessa fase de preparação para os times, especialmente aqueles com condições reais de levantar taças.
Restaram poucos daqueles fortes times interioranos que faziam frente aos maiorais, e ano a ano eram máquinas de colocar novos craques na vitrine. Por seu lado, os grandes clubes encolheram desde que perderam o papel de celeiros, apenas rodam o caixa perdendo para a Europa um bando de promessas superestimadas, meninos que vão embora precocemente sem sequer criar alguma identidade com suas torcidas originais. Viajam para o sonho de fama e riqueza carentes de tudo no mundo, inclusive no campo emocional, e apenas meia dúzia vingam e conseguem se destacar da multidão.
Claro que a torcida se afastou dos estádios. Claro que os times perderam renda, ficaram deficitários ou faliram. Afinal, se instalou o avesso de um tempo em que o futebol brasileiro era espetáculo, com uma lista interminável de craques entrando em campo nas quartas e domingos. Basta pensar que havia até um certo Pelé nesse meio, disputando o Paulistão enquanto estabelecia os padrões definitivos do jogo da bola para o resto do mundo.
Hoje em dia, quando vemos as escalações de nossos melhores times, percebemos também uma invasão de jogadores sul-americanos. Alguns muito bons, jamais fora da curva. Mesmo assim, conseguem estar entre os maiores destaques dos seus times, embora a maioria sequer alcance a condição de titulares absolutos em suas seleções nacionais. Na verdade, vêm usar nosso trampolim que garante bons salários e saltos para o futebol europeu.
Do mesmo trampolim podemos mergulhar nos velhos tempos em que os gringos que atuavam por aqui eram cracassos como Figueroa, Pedro Rocha e tantos outros inesquecíveis que ajudavam a fazer a grandeza dos Estaduais.
O Paulistão – primeiro Estadual jogado no Brasil – este ano foi disputado entre Palmeiras e Santos, encerrado com o tricampeonato do Verdão, que era favorito disparado. Ganhou o título em cima de um Peixe recém-rebaixado para a Série B do Brasileirão, um fantasma da “máquina” que encantou o planeta como um dos maiores times de todos os tempos. A conquista do Estadual não trouxe novidade nenhuma ao cenário de hegemonia alviverde. Enquanto isso, Corinthians tenta ressurgir das cinzas de administrações caóticas, algo que não é privilégio do Timão. São Paulo segue irregular, embora tenha entrado numa fase promissora. Red Bull Bragantino vai se firmando no meio dos melhores ao longo dos últimos anos. Os quase grandes de Campinas (Guarani e Ponte Preta) seguem distantes do poderio dos velhos tempos. A Portuguesa continua o trabalho tentando ressuscitar. O interior, que sempre traz uma ou outra surpresa, animou com Novorizontino e Mirassol, times de cidades muito pequenas e com boa estrutura. Sem contar o ascendente São Bernardo, ausente das fases finais em razão do regulamento esdrúxulo – não cabe reclamação, pois foi endossado por todos os participantes do torneio.
Mesmo contrariando o pensamento do guru da autoajuda Tite – que considera o Carioca o mais importante do mundo –, o Paulistão é o Estadual mais competitivo do país. E nem é necessário lembrar que sua Série B, disputada por 16 times (São Bento, XV de Piracicaba, Ferroviária de Araraquara…), tem nível técnico bem superior à maioria dos Estaduais do resto do país. Nos registros estatísticos do Paulistão temos Corinthians (30 títulos), Palmeiras (26), São Paulo e Santos (ambos com 22).
No Carioca, o Flamengo sobrou com seu elenco estelar para os padrões da América do Sul e levantou a taça invicto, sofrendo um único gol. E confirma ser, ao lado do Palmeiras, o grande time do país na atualidade. Venceu com facilidade o simpático e emergente Nova Iguaçu na final, depois de passar a duras penas pelo Fla x Flu na semifinal. O Fluminense parece ter chegado ao pico, vencendo as agruras do dinizismo e as dificuldades físicas do elenco envelhecido. O Botafogo ainda junta os cacos do trauma do Brasileirão 2023 – o campeonato perdido mais ganho que já se viu –, enquanto tenta se adaptar ao estilo mercantil do seu proprietário americano e ao vaivém de treinadores. O Vasco segue na desgraça cada vez mais longa, massacrando uma torcida apaixonada e entorpecida pelo sofrimento, administrado por uma SAF que não demonstra qualquer interesse de conexão com a história do clube. Os times pequenos marcaram presença com Bangu, Madureira e Portuguesa no rodapé da tabela. O interior trouxe a grande surpresa do Nova Iguaçu, o tradicional Volta Redonda e a novidade de Saquarema – famosa pelo surf – como um novo polo futebolístico com Audax, Boavista e Sampaio Corrêa. Antigos tradicionais como América [rebaixado, tendo a volta de Romário como novidade(!)], Bonsucesso e Olaria sequer estão no radar do futebol. Nos registros estatísticos do Carioca temos Flamengo (38 títulos), Fluminense (33), Vasco (24) e Botafogo (21).
O Mineiro teve a final que a torcida mais gosta, entre Atlético Mineiro e Cruzeiro, e deu a lógica dentro do momento: o Galo fez prevalecer seu melhor elenco e bateu a Raposa, levantando mais um caneco. O Coelho (América Mineiro) caiu nas semifinais e a surpresa – mais uma vez – foi a campanha da Tombense (da pequena Tombos, cidade de menos de 8 mil habitantes), outra vez entre os melhores. Nos registros estatísticos do Mineiro temos Atlético Mineiro (49 títulos), Cruzeiro (38), América Mineiro (16) e Vila Nova (5).
O Gaúcho terminou com o Grêmio vencendo a final contra o Juventude. Algo esperado, já que a maior surpresa foi a queda do Internacional – que ficou ainda mais internacional com a contratação de alguns estrangeiros – nas semifinais diante do Caxias do Sul. Esse mau desempenho irritou a “metade colorada” do Rio Grande do Sul, inclusive pela distância abissal das folhas de pagamento (menores) dos demais. Aliás, a questão econômica é um dos efeitos nefastos dos Estaduais sobre os clubes: em campeonatos polarizados ente duas grandes equipes, investimentos financeiros e vitórias em campo não geram lucros, nem mesmo para o campeão. Nos registros estatísticos do Gaúcho temos Internacional (45 títulos), Grêmio (43) – mostrando que a disputa entre os rivais que dividem a paixão futebolística dos pampas é muito acirrada –, Guarany (2) e outros 14 clubes (1 título para cada).
No Paranaense, a decepção se repetiu com o Coritiba, que caiu nas semifinais para o Maringá, resultado surpreendente, mas que atesta a decadência do alviverde do Alto da Glória nos últimos anos – rebaixado, o Coxa está disputando a Série B do Brasileirão. Bom para o Athletico Paranaense, que em seu centenário brindou os torcedores com mais uma conquista. Nos registros estatísticos do Paranaense temos Coritiba (39 títulos), Athletico Paranaense (28), Ferroviário (8) e empatados Paraná e Britania (7).
O Catarinense continua sendo um dos Estaduais mais equilibrados de todos e viu o Criciúma levantar mais uma taça, vencendo o emergente Brusque. O resultado fez justiça ao melhor time de Santa Catarina no momento. Nos registros estatísticos do Catarinense temos Avaí (18 títulos) e Figueirense (18). O equilíbrio segue mostrando também empatados Criciúma (12) e Joinville (12).
No Baiano, o Vitória ganhou com todos os méritos, apesar dos investimentos do grupo City no Bahia do treinador Rogério Ceni – ele mesmo uma aposta do investidor. Embora na Boa Terra se diga que se macumba ganhasse jogo o Estadual terminaria empatado, nos registros estatísticos do Baiano temos Bahia (50 títulos), Vitória (30), Ypiranga (10) e Botafogo (7).
O Cearense produziu uma surpresa com a conquista do Ceará, já que o Fortaleza vem de diversas temporadas com ótimas campanhas em diversos torneios de projeção. O alvinegro ganhou nos pênaltis e deixou tricolor a ver navios, mesmo com um time mais poderoso tecnicamente. Nos registros estatísticos do Cearense temos Ceará e Fortaleza empatados com 46 títulos – baita equilíbrio entre o Vozão e o Leão do Pici –, Ferroviário (9) e Maguari (4).
O Pernambucano terminou com o Sport vencendo a disputa com o Náutico na final. Os rubro-negros da Ilha do Retiro continuam disparados na quantidade de conquistas. Nos registros estatísticos do Pernambucano temos Sport (44 títulos), Santa Cruz (29), Náutico (24) e América (6).
O Goiano terminou nas mãos do Atlético Goianiense, depois da vitória sobre o Vila Nova. Neste momento, o Dragão é o melhor time do Estado e fez valer seu favoritismo. A decepção do torneio ficou por conta do Goiás, que caiu nas quartas de final diante do Goiânia. Nos registros estatísticos do Goiano temos Goiás (28 títulos), Atlético Goianiense (18), Vila Nova (15) e Goiânia (14).
Nos Estaduais de 2024 os rubro-negros fizeram festa com os títulos de Flamengo, Athletico Paranaense, Vitória, Sport e Atlético Goianiense. Das 27 unidades federativas (26 estados e o Distrito Federal), apenas dez Estaduais seguem dignos de nota para o resto do país. Na maioria dos estados, o futebol enfrenta o desinteresse das torcidas em razão da falta de investimento e consequente baixo nível das disputas. Quase todos os clubes estão em frangalhos, os estádios ficaram obsoletos, as federações continuam feudos de politicagem e compadrio e a desorganização não dá trégua. Um conjunto de vícios que fecha o caminho para qualquer possibilidade de mudança.
A cada ano, quando terminam os campeonatos, o sopro de sobrevivência que insiste em se manter nesse ambiente de terra arrasada é o espasmo de paixão de torcedores acompanhando heroicamente seus times que conseguem disputar as Séries C e D.
Talvez os Estaduais ainda sobrevivam em razão das rivalidades de muitas décadas. Há quem considere que esses campeonatos apenas iludem torcedores desavisados. Como boa parte deles não vivenciou os tempos em que até os times pequenos tinham craques em campo, carecem de termos de comparação para perceber que o nível atual é muito baixo. Terminam engrupidos pela miragem de que os Estaduais são a pré-temporada para torneios mais importantes como Brasileirão, Libertadores, Sul-Americana, Copa do Brasil, Copa do Nordeste, e se enchem de esperança.
É nesses torneios realmente competitivos que vão viver grandes decepções, colocar à prova a paixão pelos seus clubes do coração ao vê-los servindo de coadjuvantes até para times apenas bem-arrumados taticamente – colombianos, equatorianos e os sempre aguerridos argentinos e uruguaios. É quando o castelo de areia desaba pelo choque de realidade.
Ainda mais quando alguns times inventam um novo fundamento: poupar jogadores logo no início da temporada de verdade e permitir ladainhas constrangedoras de seus técnicos reclamando de tudo, até da qualidade da bola. Sim, virou piada! Tanto que Abel Ferreira (Palmeiras) e Tite (Flamengo), que comandam exatamente os dois melhores times do Brasil no momento, são os mais empenhados nesse humorismo rasteiro.
Apenas para ratificar, decidimos publicar este texto somente agora, com os diversos torneios que realmente importam já em curso, na esperança de perceber algum efeito visível dos Estaduais como fase de preparação para o resto do ano. Basta tomar como exemplo Flamengo e Palmeiras, que levantaram as taças estaduais mais importantes e são quem são, e nada foi diferente. Inclusive os prejuízos financeiros desses torneios falidos.