Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

KALUNGA E HERALDO Missiva da miscelânea

Richards Drawings/Pixabay

Missiva da miscelânea

  • Kalunga Mello Neves e Heraldo Palmeira

Dois colaboradores do Giramundo, amigos de longa data, voltam às missivas como nos velhos tempos. Apenas mais uma maneira de seguir trocando ideias e driblando o que não interessa

Kalunga Estou eu sentado num banquinho do pensamento, pés acariciados pelas águas do meu rio Jaguarão. Estou longe daqui, observando um mundaréu que se torna distante à medida que me aproximo de mim.

Penso no meu amigo de Acari. Um amigo de sempre que já conheci quase velho. Sonhador que só, rimando a esmo pela vida. Quis o destino que nascêssemos em Rio Grandes diferentes. Eu, no do Sul, ele, no do Norte. Eu do frio, ele do quente.

A gente conversa, se conta as novidades, concorda e discorda, troca ideias, dispensa algumas, aprofunda outras. Faz da vida uma brincadeira verbal fluente e inconformada. A gente mente a gargalhar, finge que acredita no que não disse, se deseja boa sorte sempre.

Gostamos de música, talvez eu mais do Osvaldo Montenegro e ele do Belchior. Adoramos a breguice do Carlos Alexandre e do Teixeirinha. Em futebol, não sei se ele gosta do Inter, e eu nem sei em que divisão o América está.

Mas, voltando à vaca fria, resolvi num repente escrever esta missiva para saudar a diversidade da nossa amizade. A mídia, esta entidade indomável e descarada, insiste em jogar na nossa cara coisas para a gente querer ficar de mal. Com o mundo. A política, mestra em nivelar por baixo até o que já está abaixo de qualquer nível, nos coloca felizmente na distância prudente “nós e eles”. Ironizar contextos é nossa especialidade, meu amigo. E como diriam meus patrícios Kleiton e Kledir, dois gaúchos bunda-mole, viva eu, viva tu e viva o rabo do tatu.

Heraldo Estou aqui esparramado no sofá da preguiça, pés descalços sobre o tapete macio, como quem sente as águas do Gargalheiras, meu açude de menino. Não estou perto nem longe de nada, aprendi a deixar o mundaréu o mais distante possível e gosto disso. Assim, fico perto de mim. Sim, temos a mesma manha de fugir do que não interessa.

Pensar nos amigos é uma forma de viver. Quase sempre eles nos rejuvenescem com momentos bons. Que importa se são breves, se a soma deles é enorme? Ouvi alguém dizer certa vez que grandes amizades só nascem até a juventude. Nós desmentimos isso; talvez pela distância entre meu Acari e seu Jaguarão, quase Chuí, precisamos mais tempo que o costumeiro até chegar ao ponto de encontro. Você, um brincante, me chamar de sonhador? E as rimas das suas escritas e músicas? E anote aí: eu do quente Nordeste, detesto calor.

Já pensou que saco é uma conversa de concordâncias e sem novidades? Ainda bem que temos livre arbítrio para trocar ideias, resolver as dores do mundo, achar solução para tudo aquilo que nunca será solucionado. Afinal, não somos diferentes de ninguém. Ao menos fugimos dos clichês sem sal das conversas que dominam o cenário. O melhor de tudo é não garantir nada – por isso, mentimos a gargalhar – e jamais dizer o que não acredita. E boa sorte sempre para que a vida nunca perca o tom de brincadeira.

Cheguei a um ponto de só gostar de música boa. Critério? Há uma espécie de filtro secreto – cada pessoa tem sua própria regulagem – que diz “tudo bem” ou “Deus me defenda” quando rola o som. Quem garante que o chique não é apenas o avesso do brega? Como ignorar a trilha sonora das dores das guampas? Ao fim e ao cabo, desejo que você goste tanto dos Beatles quanto eu. Gosto do Inter tanto quanto do Grêmio. Claro que é possível, não sou gaúcho, ora! E o Mequinha está no meio da tabela da Série D, não é sequer a sombra daquele timaço de 1973/1974 que tinha os gaúchos Garcia, Jangada e Pedrada em campo.

Fiquei pensando aqui que missiva é a cara do tempo em que o correio era parte da família, por conta da doce tarefa do carteiro transportar as letras que imprimiam nossas vidas. Escrever é ainda mais interessante com tanta coisa para dizer. Podemos concordar ou reclamar das notícias e da mídia, tem horas que o mundo beira o inacreditável mesmo. Nosso ponto pacífico é jamais dar trégua a essa horrorosa política que consegue afundar até o conceito de baixo nível. Sim, não há perigo de aproximação, estaremos sempre em balaios distintos: “nós e eles”. Temos a ironia como aliada para rir de tudo e até fazer rir quem motiva nosso riso. E festejar a riqueza linguística da nossa terra, que tem seus jeitos de dizer as mesmas coisas de Norte a Sul. E viva o rabo do tatu, sinônimo de curto e grosso. Bom lembrar dos meninos Kleiton e Kledir, cadeiras cativas de qualquer lista de boa música desde os tempos da gurizada dos Almôndegas. Que ironizaram o machão gaúcho com o bunda-mole que colocaram na música Trova, nada mais do que um repente, o canto de improviso da parte de cima do mapa. Somos assim do Oiapoque ao Chuí – pouco importa que o Monte Caburaí seja agora o ponto mais Norte do país. Viva eu e viva tu! E por aqui tatu a gente come, é prato típico raiz.

*KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

 

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