Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

RENATA FERNANDES Joia rara, odara

Divulgação/Uns Produções e Filmes

Joia rara, odara

  • Renata Fernandes

Nunca o verdadeiro, o belo e o bom foram tão necessários.

Semana passada, saí do show de Caetano Veloso e Maria Bethânia certa de que o sentido da vida é existir para testemunhar tanta beleza. E no mês em que Caetano celebra mais um ano de vida, volto a agradecê-lo por esse tributo à existência. Sem dúvida, a turnê Caetano&Bethânia é um tributo à existência, ao verdadeiro, ao belo e ao bom.

Narciso em Férias (2020), filme de Renato Terra e Ricardo Calil, soou para mim como um divisor de águas na pandemia. É o relato da prisão imotivada de Caetano aos 26 anos, durante o AI-5, sem defesa ou direito ao contraditório. Debruçado sobre o passado e como se estivesse em uma Comissão Afetiva da Verdade, ele faz uma exposição íntima e detalhada daquela violação que sofreu sem direito a defesa ou ao contraditório.

Foram 54 dias no cárcere, que começaram com a aparição dos policiais em sua casa, em São Paulo, nas primeiras horas da manhã, até sua soltura e chegada em Salvador. Com doçura e firmeza, Caetano fala sobre os dias na solitária, as canções que marcaram o período de confinamento e os episódios vividos com seu amigo Gilberto Gil. E demonstra que nas frestas impossíveis dos porões militares naquele sombrio dezembro de 1968 brasileiro, a vida se impôs pelo amor, pela poesia e pela música.

Parodiando Borges, antes de ouvir Caetano, depois de ouvir Caetano, aquele divisor de águas virou a medida do meu tempo. Desde então, tenho procurado abrigo no verdadeiro, no belo e no bom para garantir a minha própria sobrevivência.

A nova brutalidade a que estamos agora submetidos, com o uso predatório das redes sociais para desinformar, provocar e impor narrativas, nos trouxe à beira da exaustão. Perdemos tempo e energia respondendo a insultos ou ficando incrédulos com o que testemunhamos, inclusive de familiares e amigos.

O documentário O Dilema das Redes (2020), dirigido por Jeff Orlowski – com participação de ex-empregados de gigantes de tecnologia como Facebook, Google e X –, discute o monitoramento constante dos usuários e ajuda a explicar de que maneira mentiras substituem fatos, nos aprisionando em uma linguagem que lucra com confrontos artificiais, viciando e impedindo, por meio da atuação de algoritmos, que qualquer racionalidade se instale.

Mesmo diante da beleza da turnê Caetano&Bethânia, as redes são implacáveis quando se trata de julgar e sentenciar os outros. Fazemos isso, mesmo sem perceber, todos os dias. “Ah, estão velhinhos, né?”, conclui um. “Acabou, já tá na hora da aposentadoria”, decreta outro. Gente!

É óbvio que o tempo passa para todo mundo. É claro que não existem mais os pulinhos do Caetano nem a reverência até o chão da Bethânia ao público, famosos elementos cênicos dos dois. Mas permanece intacta a magia do verdadeiro, do belo e do bom. E a suprema beleza da arte.

O mais impressionante é ver como a grosseria tomou conta da nossa sociedade, as pessoas perderam a capacidade de entender essa temporada de shows como um gesto de carinho para o público de dois artistas imensos, que bem poderiam ficar sossegados no conforto do que conquistaram, mas toparam cair na estrada em favor da música brasileira. É justo confessar: os dois irmãos, ela com 78 anos, ele com 82, ainda nos fazem reviver de uma forma especial a grandeza da poesia cantada, algo de grande valor. A dificuldade de demonstrar reconhecimento e gratidão por uma obra artística monumental parece consequência da indigência intelectual coletiva.

É desagradável conviver com tantas gerações que sequer conseguem compreender que a liberdade e as facilidades que desfrutam hoje passaram pela insistência da arte e seus artistas na construção de um mundo melhor através de lutas desiguais e de alto risco. É desesperador perceber que essas gerações sequer entendem o conceito de liberdade, abraçam alegremente a indigência intelectual com ar de superioridade, acreditando no falso poder da juventude como se ela não envelhecesse e não houvesse amanhã. Já dizia o próprio Caetano, “Será que esta minha estúpida retórica terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?”. Somos mesmo uns boçais!

O Brasil odeia a velhice, a menospreza e não a respeita. É comum tratar os velhos de forma infantil, como se fossem retardados mentais: “Já tomou sopinha hoje”? Não dá, né? Caetano e Bethânia seguem na contramão dessas babaquices. São patrimônios imateriais nacionais e deveriam ser vistos como tal. Pena que não nasceram anglo-saxões para ter a memória artística garantida e preservada na devida altura do verdadeiro, do belo e do bom.

É bom começar a pensar onde você estará aos 80 anos. Se eu não tiver morrido, certamente estarei em casa vendo TV. Se a cabeça e a vista ainda permitirem, escrevendo amenidades nas redes sociais e ouvindo Caetano, Bethânia e quem mais mantém vivo o verdadeiro, o belo e o bom, que também estão em filmes e livros. Talvez uma forma de continuar tendo a certeza de que o sentido da vida é existir para testemunhar tanta beleza.

*RENATA FERNANDES, jornalista e bailarina da vida

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