Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Movendo montanhas

Flávio Rezende

Movendo montanhas

  • Heraldo Palmeira

“Diz aí pra minha tia que eu fui viajar, diz que fui pra Nova York ou pra Bagdá” (Kledir Ramil)

As peripécias de Flávio Rezende – o Alma Boa com lugar cativo aqui no Giramundo – são instigantes por seu espírito aventureiro. Trocando em miúdos, uma daquelas pessoas que se torna local em qualquer lugar do mundo.

Ele já tinha visitado os EUA algumas vezes naquela correria da indústria do turismo. Até que resolveu ir sem pressa e ficou 70 dias por lá, com tempo especial para Nova York. Foram 38 dias exclusivos para a cidade, se espalhando pelas ruas sem qualquer programação. Apenas saía de casa todos os dias “armado” com sua Canon 80D, olhos atentos para desvendar tudo que pudesse.

A foto (acima) é um achado do olho fotográfico de Rezende – uma cena que muitos outros fotógrafos também registraram. O clique de um pedaço da Wall Street com a lente apontada para a Broadway e a cena resulta maravilhosa: a Trinity Church (Igreja da Trindade), cuja história remonta a 1696 quando a comunidade anglicana adquiriu terras na ilha de Manhattan para edificar seu novo templo.

Setembro de 1776 trouxe os primeiros dias da ocupação militar britânica de Nova York em razão da Guerra da Independência. Na madrugada do sábado 21 boa parte da cidade foi destruída pelo fogo originado possivelmente de forma proposital numa taverna, no que ficou conhecido como O Grande Incêndio de Nova York. A igreja foi inteiramente consumida num encontro nada promissor entre as chamas profanas da taverna e o fogo sagrado dos altares.

O incêndio se alastrou pela Broadway e Beaver Street e, depois de um dia inteiro arrasando prédios comerciais e residências no extremo sul da ilha de Manhattan, foi finalmente dominado pela população depois que os ventos mudaram de direção – até hoje resta a dúvida sobre quem mexeu nos ventos.

A igreja foi reconstruída no mesmo local – cruzamento da Wall Street com a Broadway, no centro financeiro de Manhattan – e agora faz parte da lista dos pontos turísticos mais famosos da cidade..

Foi nessa Big Apple contemporânea que o viajante Alma Boa se sentiu vivenciando uma espécie de pré-futuro em razão das modernidades sociais que cruzaram seu caminho pelas ruas, e reavivou sua visão a respeito das divindades e religiões. Tanto que em As cores do mundo (link abaixo), um dos seus tradicionais “escritos da alma”, ele foi claro a respeito do “ópio do povo”:

Estando em Nova York pude já antever um pouco deste futuro quase presente, as novas cores do mundo: seres altamente diferentes, comidas de todos os tipos, comportamentos plurais e, o melhor, as pessoas convivendo com isso de maneira absolutamente natural.

Mas a grande revolução que teremos no futuro próximo vai mexer nas almas. Sabe aquela história do Deus bonzinho, da submissão religiosa, da devoção solicitada por todos os ícones religiosos? Balela, isso é na verdade a big fraude. Afinal, que bondade é essa quando bombas matam crianças, todo tipo de gente ruim tem projeção e apoio e, apesar de o Homo sapiens crer nesse pseudocomandante do bem por milênios, desgraças e tantos tipos de mal parecem vencer sempre? Quem já não ouviu que tudo isso é para testar nossa fé? Permanece atual o sucesso popular dos Paralamas: “A arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê”.

Já disseram que “a religião é o ópio do povo”, e isso só se comprova junto à ladainha de que devemos prestar devoção a um monte de divindades, que, na verdade, nunca resolveram nada, só nos pedem obediência cega enquanto o planeta e nós convivemos diariamente com mortes, crimes, impunidade, injustiças, guerras, corrupção…

Recebi Alma Boa em casa para uma tarde de prosa e café. A mesa estava posta com os ingredientes da nossa melhor cultura gastronômica para os cafés da tarde, cerimônia que na nossa infância era chamada de merenda e os acompanhamentos de mistura – biscoitos, bolo, queijo, leite, doces…

Ele é um sessentão incrédulo de religiões, mas cheio da fé que espalha por todo canto sem omissões, em pensamentos e palavras, atos e fotos. Eu, também sessentão, católico sem exageros que leva por todo canto a própria fé de que o mundo será melhor algum dia – não importa que (eu) não esteja mais nele. Algo me diz que essa conquista dependerá muito mais de nós do que de qualquer divindade, religião ou pregações barulhentas.

Falamos dessa prática horrorosa de as pessoas não mais trocarem ideias, apenas atacarem tudo que discordam sem propor coisa alguma. Lamentamos por quem se pronuncia sem ter o que dizer, por desconhecimento da realidade e preguiça de se inteirar. Seria muito saudável se alcançassem Clarice Lispector, “Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade”. Que mistério tem Clarice? Pena que este tempo de ignorância vá fazendo dela uma ilustre cada vez mais desconhecida.

Andou conosco caminhos

De frutas e passarinhos

Mas jamais quis se despir

Entre os meninos e os peixes

Os botões sempre fechados

Clarice tinha o recato

De convento e procissão

Eu pergunto o mistério

Que mistério tem Clarice

Pra guardar-se assim tão firme

No coração

Eis que Paixão e Fé começou a tocar no estéreo da sala, na voz celestial de Milton Nascimento:

Velejar, velejei

No mar do Senhor

Lá eu vi a fé e a paixão

Lá eu vi a agonia da barca dos homens

Já bate o sino, bate no coração

E o povo põe de lado a sua dor

Pelas ruas capistranas de toda cor

Esquece a sua paixão

Para viver a do Senhor

Retomamos a questão que Rezende abordara, da submissão religiosa, da devoção solicitada pelas divindades. Dono de uma lista de contatos bastante robusta e ativa nas redes, o texto correu rápido. Ele revelou que, no meio de muitos comentários, meia dúzia de devotos da intolerância digital ocupou o altar se passando por sacerdotes donos das virtudes. Essa gente é impressionante: dos 4.113 caracteres de um texto interessante e cheio de ótimas sacadas, apenas 944 compõem o trecho que faz referência a questões de religião. O suficiente para alguns (poucos) daqueles cristãos de internet proferirem suas orações desaforadas.

A fé é uma questão de fé. Dizem que move montanhas. “Não se discute futebol, religião e política”, recomenda o prudente dito popular, já que nesses três assuntos há paixão e fé devidamente reconsagradas – à bola, à interpretação e à patifaria.

Mais adiante tocou Fé Cega, Faca Amolada, outro clássico do repertório de Bituca:

O brilho cego de paixão e fé, faca amolada

Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar, faca amolada

Irmão, irmã, irmã, irmão de fé, faca amolada

A fé, a fé, paixão e fé, a fé, faca amolada

Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser muito tranquilo

O brilho cego de paixão e fé, faca amolada

Lamentamos o argumento que só dispõe do grito, o que revela o quanto o mundo está empobrecido. Lamentamos as religiões contaminando a política com o que há de mais radical e atrasado. Lamentamos que todo mundo tenha decidido que sempre tem razão, sem pudor de exibir paixão, fé cega e faca amolada.

A música seguinte foi O Segundo Sol, na voz poderosa de Cássia Eller. Começamos a refletir sobre a letra. Encontramos uma entrevista concedida há algum tempo pelo compositor Nando Reis a respeito: “A música é sobre o que tem de misterioso nas nossas fés, nas respectivas crenças pessoais. Ninguém detém a verdade e você não pode desqualificar a crença de uma pessoa, por mais que ela esteja baseada em crenças que você não divida. Fé é uma palavra que não se impõe a ninguém”.

Aprumamos a prosa em busca de algum sinal de fé. Estava ali, escancarada na foto da Igreja da Trindade. Espremida por arranha-céus, altiva na sua função de propagar a fé aos seus fiéis. Dogmas mantidos a salvo num templo sob um céu cada vez mais invadido pela engenharia humana em busca das alturas num mundo assombrado com o futuro e a intolerância.

Nossa geração nasceu no então maior país católico do mundo e o Alma Boa nunca foi ateu, cresceu numa casa católica e com o tempo foi conhecendo outras manifestações religiosas – sinal de que a fé tem força e é livre. Na verdade, estava procurando sua própria sintonia espiritual. Hoje não é praticante de nenhuma religião propriamente dita, é apenas “devoto de Sai Baba, Krishna, Jesus e esse povo todo que veio ao mundo para fazer o bem”. Prefere não se prender a nenhum credo específico, meditar incluindo ensinamentos espirituais com os quais se identifica. Sem rigores litúrgicos, mas com um testemunho prático impressionante – a alcunha Alma Boa não surgiu à toa.

Nos despedimos na porta da minha casa, já com a noite começando a fazer sua parte num dia que foi ótimo porque teve amizade, alegria, músicas, letras, memórias, saudades, sorrisos, sossego, planos, silêncios, sons, café e especiarias. Tudo acomodado numa boa conversa, essa maravilhosa invenção humana composta de falar e ouvir sem lugar para donos da verdade.

Voltamos às nossas solidões certos de que serão necessárias muitas fés para remover tantas montanhas. Ainda bem que não perdemos as nossas. Uma certeza: entendemos desde cedo e praticamos pela vida a mensagem “Faça a sua parte” supostamente recomendada pela divindade. E chegamos até aqui. Amém!

Trechos incidentais Fonte da Saudade (Kledir Ramil) | Alagados (Herbert Vianna-Bi Ribeiro-João Barone) | Clarice (Caetano Veloso-José Carlos Capinam) | Paixão e Fé (Fernando Brant-Tavinho Moura) | Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos) | O Segundo Sol (Nando Reis)

HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

Leia também

As cores do mundo   https://giramundo.blog.br/as-cores-do-mundo/

Ouça/veja aqui

Fonte da Saudade   https://open.spotify.com/intl-pt/track/4evRZqacg3HxasW7iKR0dt?si=9719ec2559c84ae8

Alagados   https://www.youtube.com/watch?v=MTOyw7SjhiQ&t=3s

Clarice   https://www.youtube.com/watch?v=L8Gi6lr3FnM&t=114s

Paixão e Fé   https://open.spotify.com/intl-pt/track/6UVHUZdy9IxpRQVh3YWG2q?si=9bdc63cec05642c2

Fé Cega, Faca Amolada   https://open.spotify.com/intl-pt/track/64ZTy1DsCuYufxaBBUSFxA?si=cd3ad357ea3b4232

O Segundo Sol   https://www.youtube.com/watch?v=AHLDKZDUH9o&t=9s

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