Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

Banca de música

Divulgação/Banca DuChamp

Banca de música

  • Heraldo Palmeira

Resumo da saudade Sabe aquele lugar quase mágico que a gente ia regularmente para comprar títulos interessantes, nacionais e importados – jornais, revistas, livros, publicações independentes –, produtos de tabacaria, bombons, chicletes, pastilhas e outras guloseimas? Onde também se batia ponto para encontrar amigos, trocar ideias, jogar conversa fora e virar amigo do jornaleiro? Endereço de prazeres insondáveis, acolhia nossas encomendas para formar nossas coleções, uma espécie de remédio de uso contínuo para o intelecto. Sorte de quem sabe decifrar esse conjunto de maravilhas como banca de jornal – cigarreira em alguns pontos do país.

Com o tempo, aquelas caixas metálicas foram ganhando reforço de geladeiras de bebidas e até freezers de sorvetes, além de muitos outros produtos milimetricamente arrumados no espaço exíguo. Suprassumo eram as bancas que vendiam jornais e revistas estrangeiros, soprando um ar descolado apesar do preço de luxo!

O mundo digital trouxe tempos sombrios para o mundo impresso e a leitura passou a ser demonizada por exigir tempo, algo sem lugar no conceito de rapidez dessa era tecnológica – inventaram até um padrão de 140 caracteres imediatamente consagrado.

Uma espécie de força invisível terminou ferindo de morte o hábito da leitura, liquidando boa parte dos impressos, livrarias, lojas de discos e filmes, locadoras e as próprias bancas de jornal, gerando uma indigência cultural de altíssimo custo.

Hoje, poucas bancas resistem, quase exclusivamente nas capitais, São Paulo com mais insistência. E é na Pauliceia Desvairada que temos renascimentos diversos para a velha e boa caixa de metal, item fundamental na própria formação cultural da sociedade moderna. Ou não é impagável ato de formação cultural a busca de informação daquele magote de passantes amontoado ao redor dos jornais do dia, dependurados em proteções plásticas do lado de fora? Curioso, eram tempos em que narrativas não viravam verdade com tanta facilidade.

Banca DuChamp Na região da avenida Paulista, Leandro Amaral, um arquiteto sessentão que se apaixonou pela música na adolescência e se presenteou no aniversário de 15 anos com um LP do Led Zeppelin, deu uma guinada na vida. Aquele disco foi o primeiro do seu acervo e permanece guardado com devoção, em casa. Pouco antes da pandemia, perdeu o emprego e comprou uma coleção de vinil de um colecionador que tinha ligações com uma pessoa de sua família. Lá estavam 500 LPs de ótima qualidade artística e em perfeito estado.

A comercialização começou apenas pela internet, durante a pandemia. O negócio começou a ganhar corpo, mas, mesmo juntando todo o acervo disponível, ainda ficaria uma sensação de vazio até numa loja pequena. Algo contraindicado para qualquer comércio.

Morador da avenida Brigadeiro Luís Antônio, Amaral espichou o olho para uma velha banca de jornal perto de casa. Instalada próxima do cruzamento com a rua 13 de Maio, nas franjas do Bixiga, a caixa metálica estava fechada há muito tempo num local cheio de virtudes. Basta considerar que ali é a calçada de um dos corredores urbanos mais movimentados da cidade e de forte vocação comercial. Sem contar que aquela parte da Bela Vista tem ligação histórica com o teatro e a música – uma espécie de Broadway brasileira e onde a antiga TV Record realizou seus lendários festivais e diversos programas musicais. E pelas redondezas estão residências de artistas, jornalistas e escritores que vêm transformando a região num grande polo cultural da cidade.

A banca foi a saída ideal e, depois de uma boa reforma, abriga desde 2022 uma inusitada loja de discos de 10 m² que acomoda cerca de 1 mil “bolachões”. Muita gente pensou que o nome do estabelecimento – que Amaral prefere chamar de pocket store (loja de bolso) – seria uma homenagem ao pintor, escultor e poeta francês Marcel Duchamp, ícone das vanguardas artísticas europeias da primeira metade do século 20. Na verdade, é uma homenagem à pitbull Champ, que Amaral adotou. Aliás, ele garante que é um simples empregado ali, ela é a verdadeira dona do negócio.

Em pouco tempo a banca virou point de amantes da música e colecionadores, e referência para muita gente que está iniciando sua coleção de vinis. Sem contar as pessoas comuns que passam no local e ficam surpreendidas por uma banca de música repleta de preciosidades no meio da calçada.

Uma boa ideia costuma ganhar asas rapidamente. Por isso, além do funcionamento em horário comercial, a Banca DuChamp começa a estabelecer um horário social, juntando gente nos fins de tarde dos sábados para falar de música e fortalecer laços culturais.

Tem chamado a atenção o fato de a clientela ser majoritariamente jovem, cerca de 80% de quem aparece por lá está abaixo dos 35 anos. Na verdade, uma galera que repete a tendência mundial de jovens descobrindo produtos e equipamentos que deveriam ter desaparecido do mercado, mas resistiram, ganharam a denominação vintage e seguem firmes e fortes conquistando novos públicos. Como os toca-discos e seus “bolachões”.

Muitos dos que chegam à banca são neófitos e buscam, além de discos, informações sobre como usar os equipamentos. Outro ponto interessante é que as meninas têm aparecido com destaque na busca de pérolas do heavy metal, muitas delas demonstrando paixão até maior do que velhos metaleiros.

Mercado A DuChamp surgiu num momento favorável para o mercado de discos de vinil, já que 2023 registrou aumento de 136,2% nas vendas do setor, segundo dados da CNN. Suprema ironia, mesmo tendo chegado cheio de bossa para decretar o fim dos LPs, é o CD quem está em franca decadência. Pior, prestes a desaparecer canibalizado por outras bugigangas do mesmo mundo digital em que foi concebido.

É oportuno considerar que os puristas sempre acharam o som do vinil superior ao do CD. Essa turma, com o reforço dos DJs, teve grande parcela de responsabilidade por manter vivo o grande representante dos anos dourados da indústria da música, mesmo quando os gênios do marketing “decretaram” que o LP estava “ultrapassado”.

O vinil resistiu quase de forma subversiva e enfrentou de peito aberto o CD e o streaming. Apesar da retração do mercado e da saída de cena de diversos fabricantes de componentes, algumas marcas tradicionais de toca-discos – Technics, Audio-Technica, Thorens, Marantz, Reloop, Pioneer e Denon – contornaram o problema e mantiveram suas linhas de montagem ativas.

As grandes fontes fornecedoras desse mercado de resistência do vinil foram as emissoras de rádio – quando digitalizaram suas enormes discotecas – e acervos de colecionadores cujas famílias não tinham interesse em manter. Com o passar do tempo, diminuiu sensivelmente a possibilidade de surgirem novos lotes de discos. Afinal, a linha de corte na produção da indústria se deu em 1996, iniciando uma corrida para liberar estantes e receber a nova maravilha digital que ocupava muito menos espaço.

Com a chegada dos arquivos digitais e dos sistemas de streaming, a música deixou de ocupar espaço físico e estabeleceu uma relação volátil e inimiga de qualquer fixação, o fim da relação cultural com uma mídia repleta de informações na capa e encarte.

Por isso, é surpreendente constatar que a retomada do vinil não parece chuva de verão. Ou não teríamos em São Paulo alguns comerciantes com 130 mil exemplares – cada um deles – no estoque, operando galpões enormes e movimentando uma média de 10 mil discos por mês. Se colocarmos na conta as centenas de vendedores mambembes que se espalham pelas calçadas da cidade…

Na verdade, tudo isso é reflexo de um movimento que começou a ganhar corpo em 2010 e virou um fenômeno mundial puxado pelos EUA e Reino Unido. Hoje, há grandes lojas em diversos países, a ponto de ganharem programas exclusivos em TVs fechadas, e o mercado vem crescendo de forma contínua.

A pandemia, ao manter as pessoas em casa, abriu portas para ondas nostálgicas e interesses de consumo fora do padrão, inclusive pelo público mais jovem. Tudo isso ganhou impulso com a comunicação globalizada permitindo a troca de informações e formação de grupos de interesse de alcance planetário.

A cereja do bolo é que os velhos estoques vindos de colecionadores começam a ser renovados. Diversas fábricas voltaram a operar mundo afora – no Brasil, existem três delas produzindo regularmente, duas em São Paulo e uma no Rio de Janeiro. Desse parque industrial multinacional saem relançamentos de discos antigos e, ainda melhor, novas obras lançadas por muitos artistas. O aumento da produção deverá provocar uma saudável queda nos preços, algo que soa como música para o consumidor.

É animador acompanhar o movimento ascendente de jovens interessados em se iniciar no mundo do vinil. Raramente chegam com um título específico em mente, apenas com o melhor espírito de garimpar estoques em busca de descobertas. De bônus, experimentam o prazer inigualável de manusear projetos gráficos sempre preciosos e cheios de informações relevantes. Se isso não é impagável ato de formação cultural…

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