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Fim de linha
- Heraldo Palmeira
A mídia esportiva está contaminada com esse momento de fim de contrato de Gabriel Barbosa, o Gabigol, com o Flamengo. Talvez por falta de assunto melhor ou comodismo editorial. Afinal, polêmica sempre dá audiência, ainda mais quando começa a descambar para mimimi, algo que a sociedade moderna aprendeu a venerar desde a explosão das redes sociais.
Não é justo diminuir a contribuição de Gabigol para o clube: 160 gols em 303 jogos em seis anos, trajetória iniciada na avalanche daquele time espetacular montado por Jorge Jesus. Mas não se pode inventar uma realidade paralela para modificar os fatos. Ele vinha de uma passagem desastrosa pela Europa.
Contratado pela Inter de Milão, entrou em campo dez vezes e marcou um gol. Emprestado ao Benfica, jogou cinco vezes e balançou as redes uma vez. Retornou ao Brasil emprestado ao Santos, depois ao Flamengo – que terminou comprando seu passe – com muito a provar no auge dos 22 anos. Teve sorte de cair naquela máquina de jogar bola, cercado de craques, e iniciou um processo de simbiose com o novo clube, que obviamente sofreu um profundo desgaste quando o temperamento começou a disputar espaço com as obrigações profissionais e dar as cartas.
De forma muito oportuna, a ESPN produziu matéria mostrando que Gabigol criou problemas com absolutamente TODOS os técnicos (inclusive Jorge Jesus) que passaram pelo Flamengo nestes seis anos, também listando todas as outras confusões conhecidas – revolta sempre que era substituído ou ficava na reserva, cartões amarelos e vermelhos absurdos, reclamações excessivas com juízes, barracos com adversários, prioridade para uma carreira musical fictícia, deboche com o treinador da Seleção (Tite) por não ter sido convocado, desacato às autoridades do exame antidoping, bate-boca no vestiário com diretor, camisa do Corinthians, culpar terceiros pelos próprios erros…
Como se nada disso fosse relevante, a parte pacheca da mídia insiste na conversa fiada de “ídolo, personagem”, como se o futebol não devesse exigir posturas de seus praticantes profissionais. Como é que alguém tenta relativizar a enganação desse cara desde julho de 2022? O que fez de especial desde que Filipe Luís o retirou do fundo do poço em que ele mesmo se colocou? Dois gols (em casa) contra um Galo sem alma? Fazer gols não é a função de atacantes, ainda mais de um que ganha R$ 1,7 milhão/mês e sem atrasos salariais?
A ladainha é que o Flamengo perderá muito com a saída dessa figura mais do que controvertida, e no futuro isso será cobrado. Que conversa maluca é essa? Puxa vida, ZICO saiu do Flamengo, Júnior também, ambos em busca de merecidos contratos melhores. Sem contar outros tantos craques, inclusive os que simplesmente encerraram a carreira, todos infinitamente maiores. O que aconteceu de anormal naqueles momentos? Nada além de vida que segue.
Os gabiguetes da mídia usam os dois gols marcados na final da Libertadores 2019 como panaceia para zerar todas as presepadas. Pior, acham que é feito suficiente para deixá-lo em segundo lugar na galeria dos maiores ídolos da história do time, outro completo absurdo. Não deviam forçar tanto a barra, porque essa narrativa causa vergonha alheia. Basta uma olhada na história para encontrar registrado que Zico fez os dois gols na final da Libertadores 1981. Tudo bem, é redundância, o Galinho é o maioral rubro-negro. Mas temos Nunes, que fez outros dois na final do Mundial de Clubes, naquele 3×0 histórico – o outro foi de Adílio – em cima do Liverpool. E o maioral Zico (redundância) teve participação direta em todos.
Na artilharia geral do clube, Gabigol está apenas no sexto lugar, distante 47 gols de Romário e Pirilo que vêm empatados acima. E quem se dispuser a comparar os números de Gabigol e Nunes poderá se surpreender. Sem contar que o sergipano, um tanque de guerra em campo, para quem não tinha bola perdida, era capaz de correr, marcar, driblar, cabecear e fazer gols a granel. Bom lembrar, ficou conhecido como “o artilheiro das grandes decisões”. Francamente!
Há uma constelação de estrelas que realmente tratava a bola por “você” – que nunca foi o caso de Gabigol. Jogadores lendários que um dia deixaram seus clubes e seleções nacionais sem nenhum dramalhão como se tenta armar agora. O que falar do sobrenatural PELÉ, o maioral de todos os maiorais, que praticamente reinventou o futebol, que um dia se foi do Santos para instalar a peso de ouro o soccer nos EUA, e hoje é cada vez menos lembrado? Di Stéfano, Puskás, Beckenbauer, Bobby Charlton – não fosse pela inocência midiática de Endrick –, Eusébio, Cruyff, Maradona (o bad boy maioral, de fim conhecido) são sinais cada vez mais fracos no radar da memória coletiva, exatamente porque as novas gerações só olham para os próprios umbigos.
No cenário ainda em curso, Messi saiu do Barcelona e basta olhar a tabela atual de LaLiga para ver que a vida seguiu para os catalães. Cristiano Ronaldo deixou o Real Madrid e o time segue ganhando quase tudo que aparece pela frente. Neymar… Bem… Neymar, bad boy desde sempre, deixou o futebol de lado faz tempo, tem se dedicado a ser um problema global desde quando vivia em Santos e parece já ter cansado a paciência até dos árabes.
Depois de tantas presepadas, parece difícil qualquer reaproximação de Gabigol com o Flamengo. Há quem diga que, se houver a concessão do clube para um jogo de despedida (contra o Vitória, última partida da temporada), será uma espécie de esmola. O maior empecilho é ele mesmo, pois ninguém estará livre de um novo recital de queixumes e mágoas depois do apito final. Afinal, pegou muito mal tudo que ele aprontou em Belo Horizonte, inclusive a baixaria que destinou a Filipe Luís porque foi substituído quando não estava rendendo nada em campo.
A diretoria completou o isolamento que ele mesmo iniciou na final da Copa do Brasil, proibindo sua inclusão na lista de jogadores disponíveis para as partidas que ainda restam até o fim do contrato. Tentando reagir, resolveu tirar mais onda anunciando que iria assistir ao jogo contra o Galo “na Norte” (Setor Norte do Maracanã), local de grande visibilidade na arquibancada porque ali se posicionam as torcidas organizadas. Ele queria ser visto “nos braços da Nação” e, segundo informações da ESPN, seu estafe teve juízo para consultar antes as lideranças das organizadas, que aconselharam o zé holofote a manter distância.
A reação do estádio, muito abaixo do esperado, mostrou que a proteção de um camarote foi mais inteligente, e que o vento da saturação já começou a secar boa parte das lágrimas da galera, inclusive pelo atual encantamento com o Filipe Luís que ele ofendeu. Enfim, vai se formando o consenso de que a partir de janeiro o ambiente na Gávea estará mais leve sem ele, já que o próprio jogador forçou muito a barra para desgastar a relação. Pelo visto, muita gente está trocando de lado, do “fica Gabigol” para um triste “já vai tarde”, em que mesmo os fiéis devotos começam a perceber que não vale mais a pena desperdiçar vela com santo ruim. Menos ainda uma montanha de dinheiro sem qualquer garantia de retorno.
Existem pessoas que nascem com o fiofó virado para a Lua e seguem brincando com a sorte tentando tirar a Lua de lugar. Por algum mistério insondável, essa gente sempre encontra quem ofereça paternalismo, grana e paciência para bancar tantos desajustes.
Gabigol é um desses caras e, ao longo da carreira, colecionou atitudes que desnudam sua enorme incapacidade emocional de lidar com discordâncias, cobranças, fama e dinheiro. É um sujeito que, consciente de que nunca foi um grande jogador de futebol, adotou o estilo marrento-arrogante-desbocado como escudo. Nasceu assim o tal “pacote Gabigol” tão enaltecido por parte da mídia, composto basicamente pelo surrado modelo bad boy, que sempre vem enfeitado por infantilidade, deslumbramento, egocentrismo, indisciplina, desrespeito e falta de empatia.
Para traçar um paralelo com a falta de inteligência de Gabigol basta desviar rapidamente o olhar para São Paulo e focar no holandês Memphis Depay. O cara chegou ao Corinthians trazendo uma história pessoal complexa, que passa pelo abandono do pai na primeira infância e problemas com consumo e comércio de drogas na adolescência. Mas o futebol propiciou fama como segundo maior artilheiro da Laranja Mecânica – só faltam quatro gols para chegar ao primeiro lugar – e uma vida bem melhor onde também estão uma grife de roupas e uma carreira na música como rapper.
Contratado por R$ 4 milhões/mês – cifra inédita por aqui –, antes de chegar ao Brasil teve o cuidado de estudar a história do clube e seu significado na sociedade em que está inserido. Desde que desembarcou no país tem dado aula sobre chamar holofotes com competência. Ainda no aeroporto, saiu do jatinho particular e foi ter com a torcida que o esperava, mesmo sendo alta madrugada. Dias depois, na apresentação oficial, estava impecável em terno e gravata num ambiente repleto de pessoas que se apresentam informalmente em molambos. Passo seguinte, tratou de se integrar com a torcida indo aonde ela vive, sem estabelecer qualquer distância e arranhando cada vez mais o português a partir de frases de efeito. Em campo, começou a justificar sua contratação com estilo refinado, inclusive revelando um Yuri Alberto que ninguém acreditava mais existir, e inflamando positivamente os companheiros no vestiário. É difícil imaginá-lo estúpido o suficiente para abrir rusga com alguém que lhe estendeu o braço (como Filipe Luís para Gabigol), muito menos criar um clima insuportável com o resto do elenco. De quebra, tem estimulado uma atmosfera de paixão na arquibancada deixando claro que o Timão e a Fiel são os protagonistas, nunca ele individualmente. Pelo menos até agora as coisas têm caminhado bem.
Ao buscar Gabigol na porta dos fundos do Flamengo, o Cruzeiro pode estar arranjando um problema enorme que o mercado da bola especula custar R$ 2,5 milhões/mês por quatro anos, mais luvas de R$ 48 milhões. Isso se ele realmente assinar com o clube mineiro, pois ninguém garante que não atenderá ao chamado do “novo” Santos de Neymar & Cia. – se esse projeto for mesmo adiante – ou de alguma menos provável proposta internacional. Não deve ter sido à toa que o Palmeiras pulou fora dessa aposta.
O jogo da bola sempre tabelou com bad boys, quase todos remetendo ao burlesco ou à triste certeza de que poderiam ir muito além se não tivessem insistido em driblar a sorte, até saírem com bola e tudo pela linha de fundo. Heleno de Freitas, Paulo Valentim, Almir Pernambuquinho, Garrincha, Marinho Chagas, Paulo César Caju, Doval, Mário Sérgio, Serginho Chulapa, Romário, Edmundo, Renato Gaúcho, Djalminha, Dener, Marcelinho Carioca, Vampeta, Daniel Alves, Viola, Paulo Nunes, Edilson Capetinha, Luiz Fabiano, Robinho, Ronaldinho Gaúcho… eram ídolos de diversas torcidas, mas restava certo alívio quando deixavam os clubes depois de um rastro de problemas.
Se realmente for parar em qualquer outro clube brasileiro – o Cruzeiro ainda não anunciou sua contratação –, ele deve estar atento a um detalhe importante: todas as torcidas assistiram de camarote ao rosário de encrencas que colecionou no Flamengo. Como não tem repertório de bola e nem haverá um elenco tão qualificado como o rubro-negro em campo, a situação poderá não ficar amistosa. É pouco provável que contará com a paciência que mereceu da Nação, caso insista em seguir embrenhado naquele conhecido caminho de presepadas e achando que é mais importante do que tudo e todos ao redor. Com razão, a nova torcida começará a relação colocando uma interrogação na plaquinha “Hoje tem gol do Gabigol”. Se não mostrar serviço logo…
A história ensina sem rodeios: polêmica demais é maquiagem da realidade. No caso de Gabigol, excesso de onda em busca de holofotes para compensar a ausência de bola. Seus péssimos números desde 2022 e todo esse movimento mal calculado que protagonizou na hora de sair, vai terminar demonstrando que sempre esteve superfaturado e ter jogado no Flamengo pode ter sido sua melhor maquiagem. Afinal, entrar em campo protegido pelo melhor elenco da América Latina ajudou a disfarçar muitas coisas. Ou a falta delas.