Por Heraldo Palmeira
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10 de maio de 2025

Livros flutuando

Divulgação/Serendipity Books

Livros flutuando

  • Heraldo Palmeira

A mesma humanidade que (se) fere é capaz de delicadezas sublimes

As livrarias têm elevada capacidade de criar um sentimento de pertencimento, participando intensamente da vida das comunidades como espaço de encontros, conversas, desenvolvimento intelectual e convivência ao redor dos livros.

Num mundo onde o hábito da leitura está ferido de morte pela vida digital, Chelsea, uma pequena cidade do Michigan (EUA), demonstra, com uma singela ação ao redor de uma pequena livraria, que a arte tem um papel decisivo para a nossa sanidade nestes tempos de individualismo e isolamento. Ainda mais numa localidade com pouco mais de 5 mil habitantes e distante do frenesi e das facilidades dos grandes centros.

A Serendipity Books, livraria independente administrada por Michelle Tuplin e uma equipe feminina, desempenha há muitos anos esse papel para a população de Chelsea e outras pequenas cidades dos arredores. Oferecendo livros novos e usados, a equipe conhece profundamente o acervo e dá sugestões aos clientes. Como sugere o próprio nome, se propõe a ser um lugar para descobertas ou acontecimentos agradáveis que ocorrem por acaso. A Serendipity é um pequeno negócio que se orgulha do seu perfil, não vende nem dá suporte a vendas pela Amazon e recomenda que as pessoas apoiem livrarias independentes locais.

A comunidade deu uma demonstração desse pertencimento quando a livraria mudou de endereço. Cerca de 300 moradores de todas as idades atenderam ao chamado da proprietária, unidos em mutirão para realizar o transporte dos livros até as novas instalações.

É gratificante a imagem (foto) das pessoas espalhadas pelas calçadas na ação batizada “Brigada dos Livros”, passando de mão em mão os 9,1 mil livros do estoque. Na verdade, foram duas horas de puro divertimento em um cordão humano ligando o velho e o novo endereços da livraria.

É animador perceber que a humanidade ainda é capaz de delicadezas sublimes, a ponto de usar as próprias mãos para fazer livros flutuarem de um lugar para outro. Soa como mensagem de que ainda somos capazes de reagir ao conceito de rapidez instalado pela atual revolução tecnológica e à sua dominância que nos grudou às telas dos dispositivos. Que não esmorecemos para salvar uma cadeia fundamental para o desenvolvimento intelectual: livro-livraria-leitura.

Ainda bem que livros não envelhecem e sobrevivem em qualquer cenário ultramoderno como guardiães do conhecimento humano. Eles estão delineados desde que os sumérios começaram a escrever em tabletes de argila na Mesopotâmia, em 3200 a.C., passando pelos modelos romanos do século 3 d.C. e chegando ao século 15 d.C. com a prensa de tipos móveis de Gutenberg e sua lendária impressão da Bíblia, que deu início à produção literária no modelo que conhecemos.

Amar os livros é no mínimo inteligente, uma questão de sobrevivência intelectual. Mantê-los a salvo e conquistando leitores faz parte do mesmo esforço coletivo que mantém vivos rádio, televisão, cinema de rua, discos de vinil, jornais e revistas, todos elementos de enorme valor na construção do ambiente cultural que perpetua nossa própria capacidade de criação e reinvenção.

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