Por Heraldo Palmeira
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10 de maio de 2025

HERALDO PALMEIRA e NELSON MARQUES Estradas do mundo

Scapin/Pascal Ohlmann/Pixabay

Estradas do mundo

  • Heraldo Palmeira e Nelson Marques

O fascinante mundo das estradas antigas espalhadas em diversos pontos do planeta como motores dos movimentos humanos

É impactante a leitura de A Estrada do Sol: O Redescobrimento das Estradas dos Incas (1958) do antropólogo norte-americano Victor W. Von Hagen, editado no Brasil pela Editora Melhoramentos com tradução de Raul de Paulilio.

No livro, von Hagen narra as peripécias de sua emocionante expedição com a American Geographical Society, que percorreu mais de 800 quilômetros em péssimas estradas (entre 1953 e 1954) procurando vestígios da Estrada Real dos Incas, a principal via do império, chegando à impressionante altitude de 4,5 mil metros em alguns pontos do trajeto. Por meio dessa obra e de vários outras que o autor publicou foi possível compreender um pouco os incas, uma das três nações ameríndias que se espalharam pelas Américas – incas, maias e astecas pela América Central e astecas em parte da América do Norte.

Seu sistema de estradas espalhado numa vasta região de norte a sul da América do Sul permitiu aos incas dominarem cerca de um quarto do continente, e até hoje nos intriga como puderam manter uma rede viária com mais de 30 mil quilômetros pela região andina, desde as montanhas argentinas até as montanhas colombianas, atravessando Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Caminhos espalhados pelo litoral e grandes altitudes da Cordilheira dos Andes.

Construído basicamente com pedras e areia, esse poderoso sistema de estradas dispunha de calçadas, escadas, muros, pontes e túneis. Era equipado com bueiros e drenos para evitar alagamentos, além de abrigos e locais de armazenamento de água e alimentos.

Tida com uma das mais extraordinárias obras de engenharia da era pré-colombiana, serviu para transporte de pessoas, animais e via de comércio, além de ganhar uma conotação de caminho sagrado e cultural. “As estradas dos incas foram os mais úteis e os mais estupendos trabalhos jamais executados pelo homem”, definiu o geógrafo, naturalista e explorador prussiano Alexander von Humboldt, que realizou uma excepcional expedição pela região entre 1799 e 1804, percorrendo 9,65 mil quilômetros a pé, a cavalo e em canoas, e cujo resultado é considerado fundamental para a geografia, ciências físicas e meteorologia – em seu tempo, Humboldt era o segundo europeu mais famoso, abaixo apenas de Napoleão Bonaparte.

A narrativa de von Hagen sobre a Estrada do Sol, e a sua redescoberta mais de 400 anos depois, se apoia nos cronistas espanhóis da época, como Pedro Cieza de Léon, que a viu ainda em pleno funcionamento em 1548 e não escondeu seu deslumbramento: “O Império Inca construiu a mais grandiosa estrada que há no mundo, e que é também a mais longa, porquanto se estende de Cuzco a Quito, e estava ligada de Cuzco ao Chile – numa distância de 800 léguas (quase 5 mil km). Acredito que desde o começo da história escrita do homem, nunca houve outra narrativa de grandiosidade tamanha, como a que pode ser vista nesta estrada que passa por vales profundos e por montanhas altaneiras, ao longo de alturas nevadas, sobre quedas de água, através da rocha viva e acompanhando as margens de torrentes tortuosas. Em todos esses lugares, a estrada é bem construída. Apresenta-se bem terraceada nas faldas inclinadas das montanhas; através da rocha viva, está cortada, passando ao longo de barrancas de rio, amparadas por muros de escora; compõe-se de degraus e intercala-se de pontos de descanso, nas alturas das montanhas cobertas de neve […] com postos de guarda militar, galpões de armazenagem e Templos do Sol erguendo-se a intervalos determinados no desenrolar-se do seu curso”.

Foi dessa forma que von Hagen começou a sua descrição da expedição, patrocinada pela American Geographical Society em 1952. Foram dois anos de trabalho para explorar um mundo esquecido e quase inacreditável, estendido ao longo de 16 mil quilômetros, percorrendo dois ramais quase paralelos. Um pelo litoral, acompanhando a costa do Equador, Peru e Chile. Outro através dos cumes da Cordilheira dos Andes no Equador, Peru (incluindo Cusco, a capital do Império Inca, e Machu Picchu, a cidade perdida dos incas) e Chile.

Entre os dois ramais, muitas ligações transversais, o que permitia ligação rápida entre as cidades litorâneas e das montanhas. A estrada costeira, que ligava Tumbes a Talca, tinha 4,05 mil quilômetros de extensão. A estrada andina, de Quito a Talca, tinha 5,23 mil quilômetros. Se essa rede de estradas proporcionou aos incas o domínio de vastas regiões andinas, também propiciou as incursões dos conquistadores espanhóis e, no fim, a destruição de uma cultura e a extinção de um povo.

Mais recentemente, a Estrada do Sol ganhou novos interesses dos países cortados por ela. A grande rota dos incas, agora conhecida pelo seu nome quéchua Qhapaq Ñan, ou pelo castelhano Cápac Ñan – Estrada Principal, em português –, é objeto de preservação e estudos de muitos cientistas, fazendo parte de uma política cultural unindo História, conservação, arqueologia e antropologia.

O também chamado “caminho principal andino” era a espinha dorsal do território pré-hispânico de Tewantinsuyu. Essas estradas eram percorridas pelos incas sem o uso de rodas ou cavalos, fazendo fluir bens e culturas entre vários povos andinos da Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia e cidades ainda pouco conhecidas como Huamachuco, Chavi, Soledade de Tambo, Kotosh e Huanucopampa. Ligava Cusco a Machu Picchu, Santiago e Pasto.

Dados impressionantes não param de surgir, como pesquisas recentes revelando ramais da estrada que passam pelo Brasil e levam até o oceano Atlântico. Essa parte é conhecida como Caminho do Peabiru [da língua tupi “pe” (caminho) + “abiru” (vegetação amassada)], designação utilizada pela primeira vez pelo padre jesuíta Pedro Lozano na sua obra História da Conquista do Paraguai, Rio da Prata e Tucumán, publicada no início do século 18.

Essa rede de trilhas, que formava um dos maiores sistemas viários do período pré-colombiano, era utilizada pelos indígenas ancestrais muito antes do descobrimento das Américas pelos europeus. Interligava o Peru ao litoral do Brasil, passando pelo interior do país até o sul do continente.

Na verdade, o Caminho do Peabiru, através da Estrada do Sol, estabeleceria uma fabulosa ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico e acredita-se que o principal ponto de chegada no Brasil fosse a capitania de São Vicente (São Paulo), depois de atravessar por cerca de 3 mil quilômetros os atuais territórios do Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil – nas regiões onde hoje estão cidades como Foz do Iguaçu, Alto Piquiri, Ivaí, Tibagi, Botucatu, Sorocaba, São Paulo e São Vicente, onde encontrava o litoral Atlântico.

Na cidade de São Paulo atual passava pelo Pátio do Colégio, rua Direita, vale do Anhangabaú, rua da Consolação, avenida Rebouças e região do rio Pinheiros, avançado para o interior do Estado. Outros ramais seguiam para Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, talvez até fazendo ligação com a hoje famosa (com parte preservada e restaurada) Estrada Real. Outro ramal brasileiro passaria pelas atuais Cananeia, Florianópolis e chegaria ao Rio Grande do Sul.

Diversos trechos do Caminho de Peabiru estão agora em processo de preservação, restauração e integração num mapeamento de trilhas históricas. Vários têm nomes específicos como “Caminho de São Tomé”, “Trilha dos Tupiniquins”, “Trilha dos Goianás”, “Caminho do Itupava” e “Caminhos do Mar de São Paulo”.

Todos esses caminhos e suas ramificações foram utilizados pelas tribos guarani, kaigang e xetá. Da mesma forma, pelos espanhóis, portugueses, jesuítas e aventureiros desde o século 16, o que terminou contribuindo para o extermínio dos povos nativos. Os indígenas se deslocavam pelas diversas partes do seu território, mantendo em contato as tribos confederadas através de uma espécie de correio rudimentar chamado “parejhara”, que ligava o norte e o sul do Brasil, da lagoa dos Patos (Rio Grande do Sul) até a Amazônia, de forma semelhante ao que faziam os incas na rede da Estrada do Sol.

Além disso, esses caminhos também permitiam intensas trocas comerciais, na base do escambo, entre os índios do litoral, do sertão e os incas. Os índios do litoral forneciam sal e conchas ornamentais, os do sertão, feijão, milho e penas de aves ornamentais para enfeite e os incas respondiam com objetos de cobre, bronze, ouro e prata.

As reminiscências que existem de muitos desses caminhos mostram que eles tinham cerca de 1,4 metro de largura, leito com rebaixamento médio de 40 centímetros em relação ao nível do solo e recoberto por uma gramínea chamada hoje de “puxa-tripa”. Havia sinalizações com inscrições rupestres, mapas e símbolos astronômicos e, em trechos mais difíceis, uma cobertura com pedras garantia estabilidade aos usuários.

É fácil compreender por que esses caminhos e trilhas de âmbito local, nacional e transcontinental cativam a imaginação com tanta facilidade. Talvez essa fascinação tenha começado com o primeiro europeu conhecido que caminhou por esses intrincados caminhos de conexão geográfica e espiritual (sim, tinham também essa intenção, pelo menos para os incas e para os guaranis no Brasil) entre os povos da América do Sul. Trata-se de Aleixo Garcia, navegador português que naufragou no litoral de Santa Catarina em 1516, depois do fracasso de uma missão espanhola que pretendia navegar pelo rio da Prata. Decidiu permanecer na colônia e passou a viver entre os nativos.

Em 1524, depois de ouvir muitas histórias sobre um caminho que levava até um império nas montanhas andinas, riquíssimo em ouro e prata, onde havia uma montanha de prata e um rei branco – o inca Huayna Capac, que viva em Cusco –, Garcia empreendeu uma expedição exploratória que partiu de Porto de Patos (costa de Santa Catarina) em direção ao Alto Peru, acompanhado de dois mil homens – a maioria ameríndios –, percorrendo cerca de 3 mil quilômetros.

Há registros de a tropa que fez contato com os incas e realizou um grande saque de ouro e prata por onde passou. Também esteve a menos de 150 quilômetros do cerro de Potosí (então uma montanha de prata na Bolívia, posteriormente explorada pelos espanhóis e cuja riqueza extraída foi tamanha que impulsionou a globalização). No retorno, pelo rio Paraguai, houve um ataque dos índios payaguá, ótimos navegadores de canoa e que dominavam a região ribeirinha, onde boa parte da expedição morreu, inclusive Garcia.

A rota de Garcia teve grande utilização posterior por outros exploradores como Martim Afonso de Sousa, Álvar Núñez Cabeza de Vaca, Ulrich Schmidl e os jesuítas que fundaram as missões religiosas católicas.

A falta de evidências claras da localização desses caminhos pré-colombianos tem levado à formulação de muitas teorias nos círculos acadêmicos sobre em que período histórico e por quem foram criados. Vem daí a motivação de trabalhos históricos, geográficos, antropológicos, turísticos e de preservação ambiental em diversas cidades e regiões onde provavelmente passavam, como forma de gerar conhecimento consistente, revitalização econômica e uso sustentável.

Claro que os mistérios e a riqueza cultural envolvidos produzem lendas urbanas que vão se perpetuando ao longo do tempo, como a existência de um túnel ligando a cidade de São Tomé das Letras (no circuito das águas de Minas Gerais) a Machu Picchu e Cusco. O fato de São Tome das Letras carregar o epíteto de cidade mística – local de afluência de remanescentes do movimento hippie dos anos 1960 e de uma legião de interessados em discos voadores – faz com que as lendas permaneçam circulando, no melhor estilo No creo em brujas, pero que las hay, las hay.

E essas lendas se fortalecem com novas notícias como a descoberta recente de um sistema de túneis construído pelos incas em Cusco, com mais de 2 km ligando diversos pontos estratégicos na cidade e provando que eles detinham tecnologia para alimentar as fantasias de hoje.

O sistema viário pré-colombiano é prova de elevado conhecimento de engenharia que venceu grandes empecilhos geográficos e enormes altitudes, e ainda legou para a humanidade a extraordinária cidade sagrada de Machu Picchu, descoberta em 1911 no alto de uma montanha completamente isolada – um insondável enigma arqueológico repleto de mistérios, que seguirá encantando e intrigando o mundo.

Outras estradas A História registra outros exemplos de construção de estradas que desafiam os pesquisadores. Um bom exemplo é a rede de vias romanas, as estradas do Império de Dario e as redes viárias dos chineses.

As estradas já descobertas ou ainda escondidas em diversas partes do mundo falam muito da alta capacidade civilizatória de alguns povos antigos. Não à toa, nos anos 1960 von Hagen também publicou obras (inéditas no Brasil) sobre as estradas romanas.

As famosas Vias romanas foram infraestruturas vitais para a manutenção e desenvolvimento do Estado Romano, construídas a partir de 300 a.C. durante a expansão e consolidação da República Romana e do Império Romano. O sistema viário era um meio eficiente de deslocamento de armas, pedestres, veículos e itens do comércio, além de viabilizar a comunicação oficial entre os locais ocupados pelo império.

As estradas romanas eram dos mais diferentes tipos, indo de vias pequenas locais até estradas grandes, largas e de longa distância conectando vilas, cidades e bases militares. As maiores eram pavimentadas com pedras e partes metálicas, tinham caimento e canais de drenagem adequados para evitar alagamentos, além de flanqueadas por calçadas para pedestres.

Na época de maior desenvolvimento do Império Romano, 29 grandes estradas ligavam Roma a 113 províncias, saindo de forma radial da capital. Eram interconectadas por outras 372 vias de grande porte. No total, o mapa viário romano compreendia cerca de 400 mil quilômetros, dos quais 80,5 mil eram pavimentados com pedras. Para dar uma ideia do poderio romano no período, a atual Inglaterra dispunha (na época) de pouco mais de 4 mil quilômetros de boas estradas.

Diversas estradas romanas sobreviveram por milênios. Infelizmente, muitas delas serviram de base para as estradas modernas, escondendo em definitivo boa parte das características originais daquele fabuloso sistema viário. Alguns trechos foram salvos por consciência histórica e de preservação de um passado impressionante, como a Via Ápia (312 a.C.), em Roma, considerada uma das primeiras vias pavimentadas do mundo. Há também a Via Gabiana (500 a.C.), Via Latina (490 a.C.), Via Nomentana, antes conhecida como Via Ficulensis (449 a.C.), Via Labicana (421 a.C.) e a Via Salaria (361 a.C.).

Outro exemplo dessa engenharia perfeita e durável é um trecho de 50 quilômetros na ilha de Creta. Construída pela civilização minoica há mais de 3.500 anos, a Estrada Minoica liga a antiga cidade de Cnossos a Lebena, atravessando as montanhas de Gortyn. Mantém seu traçado original e desafia o passar do tempo como a estrada mais antiga da Europa ainda em funcionamento.

A Estrada Minoica se prestava ao trânsito de carruagens e pessoas e seus engenheiros desejaram que ela resistisse ao tempo como um legado. Projetada com drenos laterais que evitam inundações e acostamentos para manobras e descanso, utilizou em sua pavimentação uma base de espessos blocos de arenito revestidos com argamassa de argila e gesso, finalizada com lajes de basalto. Terminou fazendo parte do sistema viário do Império Romano, desde que Creta virou uma de suas províncias em 67 a.C.

Outro monumento viário humano é a Rota da Seda, um conjunto de vias espalhadas pela Ásia com 6,4 mil quilômetros, que se manteve ativo desde o século 2 a.C. até o século 15, destinado a viabilizar o comércio de tecidos de seda produzidos principalmente na China, além de especiarias, metais preciosos e porcelana.

Era um sistema complexo de caminhos terrestres complementados por rotas marítimas, que conectava diversos pontos da Ásia ao leste da África e sul da Europa, que terminou no centro da conexão econômica e política do mundo moderno, além de poderoso canal de intercâmbio de bens, tecnologias, conhecimento, culturas, ideias e religiões entre diferentes povos e civilizações.

Todas essas estradas históricas serviram de rota para nobres, mercadores, agricultores, militares e religiosos que protagonizaram as transformações econômicas e geopolíticas que moldaram o modelo civilizatório que temos hoje. Construídas em épocas remotas por diversos povos revelaram as entranhas do planeta e deram início à globalização. São uma espécie de elo entre passado e presente, repleto de vestígios de períodos diversos da humanidade e com suas respectivas marcas particulares, que permanecem fortes apesar de o mundo ao redor não parar no tempo.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural | NELSON MARQUES, biólogo e produtor cultural

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