Por Heraldo Palmeira
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10 de maio de 2025

Sem Francisco

Reprodução/Francesco Sforza/Vatican Media

Sem Francisco

  • Heraldo Palmeira

O irlandês Kevin Joseph Farrell, cardeal camerlengo desde 2019, anunciou com o tom grave que o momento exigia: “Caros irmãos e irmãs, é com profundo pesar que me cabe anunciar a morte de Sua Santidade Papa Francisco. Às 7h35 desta manhã (2h35 de Brasília), o Bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai. Toda sua vida foi dedicada a servir ao Pai e Sua Igreja”.

Quando ocorre a morte de um papa, o camerlengo – um dos poucos oficiais da Santa Sé mantido no cargo durante a transição – cumpre um ritual cuja primeira tarefa é fazer a verificação do óbito depois da declaração da equipe médica. Em seguida, ele remove o “anel do pescador” do dedo do pontífice e o corta com uma grande tesoura, na presença de outros cardeais como testemunhas. Passo seguinte, o selo papal é destruído, os aposentos papais são lacrados – só serão reabertos pelo novo papa – e o pontificado é oficialmente encerrado.

Em seguida à fala pública do cardeal Farrell estava instalado o período denominado de Sé Vacante, que dura entre a morte de um papa e a eleição do seu sucessor, tempo em que a Igreja Católica Apostólica Romana fica sob governo interino a cargo do Colégio dos Cardeais e cabe ao camerlengo conduzir assuntos administrativos ordinários, inadiáveis e referentes ao Conclave. Todas as questões de cunho religioso permanecem suspensas até que o novo bispo de Roma seja escolhido.

Depois de receber a notícia do falecimento, o cardeal decano e presidente do Colégio de Cardeais, o italiano Giovanni Battista Re, cumpriu outra parte do ritual, sua tarefa institucional de informar todos os cardeais e convocar o Colégio Cardinalício.

A morte do papa Francisco, ocorrida nas primeiras horas desta segunda-feira (21/04), não foi inesperada em razão do seu estado delicado de saúde – aos 88 anos, padecia de antigo problema pulmonar e alguns outros que, cada vez mais, dificultavam suas atividades. Até sofrer o AVC seguido de um quadro de insuficiência cardíaca irreversível que lhe foram fatais, segundo informe oficial do Vaticano. Mais uma vez testemunhamos o tipo de perda que sempre carrega um tom místico, e remete os fiéis a uma ligação com o Divino.

Francisco terminou a vida no mundo dos homens cercado de imensa popularidade. Sua partida abriu um vazio no coração das pessoas de boa-fé ao redor do mundo, mas está envolta num clima de leveza. Um pesar que se estende muito além do ambiente cristão católico. Essa serenidade coletiva ao redor de sua morte pode estar associada ao fato de que seu sofrimento físico foi breve e não machucou tanto quanto a saga de um João Paulo II vivendo seu sacrifício pessoal por longo período. Também conta muito sua simpatia e brandura sempre soando como elemento de conforto para um mundo tomado pela gritaria estridente de rebanhos nada pacíficos. “Foi um papa atento a todos”, nas palavras de uma espanhola anônima vivenciando seu momento de condolências em Madri.

O argentino Jorge Mario Bergoglio foi plural no pioneirismo: primeiro sacerdote nascido fora da Europa, latino-americano e jesuíta a se tornar papa, cujo pontificado teve início em 2013 depois de uma eleição surpreendente.

Logo depois de escolhido, recebeu em audiência cerca de seis mil jornalistas de todo o mundo e revelou a escolha do nome que usaria, algo diretamente ligado ao seu amigo cardeal brasileiro Cláudio Hummes: “Na eleição, eu tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo, um grande amigo. Quando a coisa começou a ficar um pouco ‘perigosa’, ele começou a me tranquilizar. E quando os votos chegaram a dois terços, aconteceu o aplauso esperado, pois, afinal, havia sido eleito o papa. Ele me abraçou, me beijou e disse: ‘Não se esqueça dos pobres’. Aquilo entrou na minha cabeça. Imediatamente lembrei de São Francisco de Assis”, revelou o já entronizado Francisco, que em outra oportunidade ressaltou o legado de São Francisco “Queria uma Igreja pobre, e para os pobres”.

O pontificado de 12 anos de Francisco deverá ser lembrado pelo espírito de acolhida e diversas reformas que implementou no Vaticano. Talvez não tenha ido tão longe quanto gostaria, dada a realidade conservadora milenar da Igreja, um inimigo dificílimo de ser enfrentado. “A morte do Papa Francisco, previsível, deixou um vazio enorme, e, como poucas vezes antes, entendi o significado da palavra pastor. […] Ajudou a arejar o bolor secular da Igreja. Abençoava o casal gay mas não oficializou o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Enaltecia o papel da mulher, mas não abriu espaço dentro do opressivo patriarcado que domina a Igreja. Celebrava a família, mas não ousou aceitar o casamento de padres nem a ordenação de pessoas casadas. Mas, de qualquer modo, espalhou a solidariedade e o respeito ao próximo por todos os quadrantes. Ontem, havia informações de evangélicos aos prantos, de palestinos e da Federação Israelita lamentando. Com ele morreu não apenas um pedaço da Igreja, mas do espírito de solidariedade, cada vez mais escasso em um mundo dominado pelos algoritmos”, escreveu o jornalista Luís Nassif.

Francisco marcou sua passagem papal pela simplicidade, escolhendo um modo de vida distante dos privilégios pessoais usufruídos por seus antecessores. Tudo isso se revelou em diversos pontos de imediata repercussão. Sua opção por vestes comuns. A dispensa dos famosos sapatos vermelhos de couro feitos sob medida pelo famoso artesão italiano Adriano Stefanelli – que atende muitas personalidades internacionais. A recusa de viver no Palácio Apostólico do Vaticano para morar na Casa Santa Marta, uma residência bem mais modesta onde convivia fraternalmente com outros religiosos e funcionários. Foi um tipo de senha para, durante seu comando, criticar o apego ao poder e cobrar do clero um modelo de vida mais simples e humilde e mais afinado ao exemplo de Jesus Cristo.

O espaço de atuação que cabe aos líderes religiosos está profundamente ligado a questões políticas e não foi diferente com o padre jesuíta Jorge Mario Bergoglio, cuja trajetória de 56 anos de sacerdócio se divide em duas partes: de 1969 a 2013 exerceu suas atividades eclesiásticas em Buenos Aires; a partir de 2013, eleito papa, se mudou para Roma e liderou a Igreja até 2025. Considerado conservador na Argentina, consolidou nova imagem de progressista diante do mundo.

Já sob esse novo prisma, Francisco ampliou a diversidade geográfica no poder central da Igreja nomeando 108 cardeais (dos 135 com direito a voto e elegíveis para sua sucessão) de diversas partes do mundo. Sem dúvida, mexeu no equilíbrio de forças políticas que vai governar a Igreja de agora em diante.

Também será sempre lembrado pelo carisma, postura amistosa, semblante alegre e ótimo senso de humor. Como esquecer o diálogo com o padre brasileiro João Paulo Souto Victor, que o abordou em caminhada pelo pátio San Damaso, no Vaticano?

– Santo padre, reze por nós, brasileiros – rogou o paraibano de Campina Grande.

– Vocês não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração! – respondeu o pontífice sorrindo.

Apaixonado por futebol e torcedor fanático do San Lorenzo de Almagro, brincou com a eterna rivalidade entre argentinos e brasileiros, afirmando “O papa é argentino, mas, Deus é brasileiro”.

Também deixou imagens inesquecíveis, como aquela em que, irritadíssimo (como qualquer humano ficaria) com o puxão brusco que levou de uma mulher durante uma caminhada, deu três puxões e uma palmada “veemente” na mão dela para se desvencilhar do incômodo – e depois, graciosamente, pediu desculpas públicas pelo “mau exemplo”.

Uma das mais comoventes, registrou sua caminhada solitária pela praça de São Pedro em pleno isolamento social provocado pela pandemia da covid-19. Calou fundo o retrato da fragilidade humana diante do desconhecido e a esperança que ele e sua oração representavam para o mundo.

Desde o anúncio da sua morte, bandeiras nacionais foram hasteadas a meio pau ao redor do mundo. É um incontestável sinal de luto, um dos sentimentos humanos mais delicados, capaz de despir qualquer prepotência pela fragilidade que nos impõe.

O mundo está perdendo um dos maiores humanistas dos tempos modernos. Em seu momento final entre nós, Francisco merecerá uma corrente de orações que certamente espalhará misericórdia muito além do Vaticano.

O pontífice que realizou 60 viagens internacionais deverá juntar em Roma cerca de 200 chefes de Estado e de governo para seus funerais, segundo avaliações da imprensa internacional. Em sua simplicidade, determinou no testamento papal que o sepultamento deverá ser realizado na Igreja de Santa Maria Maior, local que adorava e onde costumava rezar acomodado nos bancos comuns. A sepultura deverá ser aberta em terra comum e sem adereços, e que em sua lápide conste apenas a palavra “Franciscus”.

Tudo a ver com o sujeito de batina branca que não negava um abraço a doentes terminais, mesmo que padecessem de doenças graves e contagiosas. Que não negava a mão estendida e beijos a miseráveis maltrapilhos e sujos. Que não fazia distinções entre crentes e ateus. “É melhor ser ateu do que um católico hipócrita”, disse certa vez, paralisando os hipócritas sem qualquer temor ou dúvida.

O seu sucessor terá o enorme desafio de ocupar o lugar deixado por um dos papas mais populares de todos os tempos e manter suas reformas. O novo pastor deverá cuidar de um imenso rebanho estimado em 1,4 bilhão de ovelhas, próximas e distantes, e conquistar as novas gerações para inserir a Igreja no futuro.

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