Foto: André Seiti/Itaú Cultural
O traço interrompido de Angeli
- Heraldo Palmeira
O cartunista Angeli (foto) se confunde com a história dos quadrinhos brasileiros. Vitimado por afasia, o homem que revolucionou o cartum no ambiente jornalístico está guardando o lápis e encerrando de forma precoce, aos 65 anos, uma carreira revolucionária.
Autodidata, deu os primeiros traços copiando obras de Millôr Fernandes, Jaguar e Ziraldo. Estreou aos 14 anos na revista Senhor. Recebeu grande influência do artista gráfico e ilustrador Robert Crumb, fundador do movimento underground dos quadrinhos americanos.
A partir de 1973 passou a publicar charges no jornal Folha de S.Paulo, iniciando uma ligação de vida inteira. De 1983 em diante começaram a surgir personagens retratando tipos urbanos de grande impacto como o punk da periferia Bob Cuspe, a junkie topa-tudo Rê Bordosa, os hippies antiquados Wood & Stock e tantos outros que ziguezagueavam na paisagem urbana daqueles dias. Também é desse período a revista Chiclete com Banana, um fenômeno editorial que alcançou tiragem de 120 mil exemplares, e que, ao fechar sua última página, deixou um rastro de influências no que veio depois, marcando com suas tintas as artes plásticas, cinema, música, teatro e televisão.
A estética inconfundível do seu traço e as posturas transgressoras das personagens guardaram identidade com várias gerações, verdadeiro retrato de época. Também traduziu com extrema precisão o humor paulista, carregado do clima urbano e dos maneirismos da grande metrópole. Muito disso estará presente numa seleção que juntará mil trabalhos do artista e será lançada em dois volumes pela editora Companhia das Letras ainda em 2022.
O colega cartunista Adão Iturrusgarai é taxativo: “O Angeli só não é famoso mundialmente como Robert Crumb porque escreve em português”. Laerte, também cartunista e componente do famoso trio Los Tres Amigos (Angeli, Laerte e Glauco) não deixa por menos: “O Angeli tem o peso de um Pasquim inteiro em matéria de influência e significado de uma época”.
Angeli descobriu-se vítima da mesma enfermidade que recentemente impôs o fim de carreira ao ator americano Bruce Willis. A afasia é uma doença neurodegenerativa que, ao avançar, deixa o paciente incapacitado para se expressar por fala e escrita.
Se agora não teremos mais o artista criando maravilhas diárias, desfrutaremos do roqueiro Arnaldo Angeli Filho seguindo em perfeita sintonia entre criador e criaturas que marcaram nossas vidas – todos souberam envelhecer bem. Se as mãos e a fala precisarão de descanso, a mente fértil, os olhos e ouvidos bem abertos seguirão como faróis do melhor tempero da receita humor + crítica que nos traduz em uma palavra: obrigado!