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A síntese da negritude brasileira em Mama África de Chico César
- João Galvão Neto
No seu primeiro CD, Aos Vivos, e repetindo-se em Cuscuz-Clã, Chico César apresenta uma canção que pode ser considerada como uma das melhores sínteses da questão da negritude no Brasil. Sua letra poética, fruto de anos de estrada nos movimentos de música, poesia e arte popular no nordeste brasileiro, estabelece relações que, muitas vezes, passam despercebidas de tão óbvias. O manuseio do simples e direto é matéria das mais difíceis, ao contrário do que possa parecer. Chico domina como poucos poetas da nova geração de compositores a síntese necessária à canção popular.
O ritmo dançante da canção (mais um elemento a sublinhar a negritude mais do que africanidade do tema enfocado) tende a encobrir, de certa maneira, a crítica/crônica social que está expressa nessa obra. A Mãe África, reconhecida como o berço do ser humano, transfere-se para o Brasil, chegando aqui como mãe abandonada (é mãe solteira), trabalhadora com dupla jornada (tem que fazer mamadeira – em casa), (além de trabalhar como empacotadeira – nas Casas Bahia). A primeira capital – representada pelas Casas Bahia – é o espaço nacional de maior representatividade da raça e orgulho negro brasileiro.
Mama África
(a minha mãe)
é mãe solteira
e tem que fazer mamadeira
todo dia
além de trabalhar
como empacotadeira
nas Casas Bahia
A segunda estrofe da canção, apresentada com outra melodia, reforça o dilema da mãe negra que tem que se ausentar, a contragosto, de casa, não sem antes declarar que a África não se afasta de você. Os cuidados com as crias, o fazer dengos e o pedido de entendimento das diversas atividades é arrematado com a declaração da permanência da mãe. Em síntese, a África não nos deixa, mesmo que pareça estar ausente.
Mama África tem
tanto o que fazer
além de cuidar neném
além de fazer denguim
filhinho tem que entender
mama África vai e vem
mas não se afasta de você
Na (casas) Bahia, Mama África tem se mostrado ao Brasil sempre atuante e sempre nova, gerando novos filhos e novas formas de se reciclar. A exposição da Mãe África se dá pela olodunização ou jazzificação dos seus filhos, que reviram (em todos os sentidos) suas origens e mesclam suas influências. Ressalte-se que a referência ao jazz traz consigo a marca da Mama África nos Estados Unidos, que aqui se irmana na negritude brasileiro-americana da fusão Olodum-Jazz. Essa junção é recorrente quando artistas brasileiros tocam no exterior e fazem jam sessions com grandes músicos de jazz. O Festival de Montreux, na Suíça, tem sido palco de grandes fusões, bem como do trabalho de grandes negros brasileiros na música norte-americana jazzística. Ouçam Milton Nascimento, Naná Vasconcelos, Raul de Souza, Moacir Santos, Djavan, dentre outros e não se esqueçam da formação instrumental dos grupos de choro do início do século passado (Os Oito Batutas, com Pixinguinha, por exemplo), moldados na forma dos grupos de jazz, mas com componente marcante da nossa música instrumental.
quando mama sai de casa
seus filhos se olodunzam
rola o maior jazz
Chico César expõe o cansaço e o apelo da Mama África por paz e descanso, reiterando os calos da luta (é tanto contratempo no ritmo de vida). As rimas dessa estrofe caracterizam o que forma a Mama África: interlinguisticamente, em jazz-pés, como música-dança; e em apelo paz-mais, como mais paz no ritmo de vida.
quando mama sai de casa
seus filhos se olodunzam
rola o maior jazz
mama tem calos nos pés
mama precisa de paz
mama não quer brincar mais
filhinho dá um tempo
é tanto contratempo
no ritmo de vida de mama
Chico César, por fim, cria uma síntese definitiva, ou um quase-mantra, como a (re)clamar que, ainda, não se pode achar legal ser negão nas casas Brasil, mas “deve ser legal ser negão no Senegal”.
*JOÃO GALVÃO NETO, professor e compositor
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