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A melhor professora de toda a minha vida
- Beto Barretto
– Alô!
– Bença, mãe!
– Deus te abençoe, meu filho! Deus te faça feliz todo santo dia! Que o Cristo Redentor te proteja, a Luanda e o Mateus!
Não há um só telefonema nos últimos dez anos em que minha mãe, Cimyrames Barretto de Carvalho, não repita exatamente esse mantra, essas mesmas palavras cheias de bênçãos. Repete rigorosamente como se todas as letras carregassem toda a fé, amor, afeto, perdão e misericórdia, que só uma mãe é capaz de transmitir.
E é assim que, vivendo desde 2012 no Rio de Janeiro, tendo me mudado de Brasília, nossas conversas se iniciam. Todas. Religiosamente. É como se cada ligação telefônica tivesse o dom de me afastar de todo o mal e, ao mesmo tempo, me cobrir com um manto protetor indestrutível para enfrentar o dia a dia e a distância que nos separa. Quando chego em Brasília, ela me recebe com as mesmas palavras doces, abençoadas e protetoras. Nossos encontros são carregados de carinho, de um abraço, um beijo e um sorriso encantador e contagiante. Aos 90 anos, completados em fevereiro último, ela continua sendo carinhosa e amorosa. O brilho no olhar, o sorriso aberto e a vontade de viver também estão lá. Todavia, o tempo e a diminuição lenta e gradual das funções do cérebro, têm levado pouco a pouco sua mente para uma outra realidade. O caminhar é claudicante e a força das mãos, antes hábeis no cozinhar e no tricotar, já não cooperam mais. A exímia contadora de piadas já não está tão presente. A memória, sua grande marca registrada, vem sendo cotidianamente tocada por alguma borracha do tempo, que cisma em apagar as lembranças recentes. E também, por um desses milagres nunca explicados, ainda preserva lindas memórias de um passado longínquo. Como a chegada da família em Brasília, nos idos de 1961. Isso ela tem viva na memória.
Lembra também de quando lecionava na Cidade Livre, antiga denominação do Núcleo Bandeirante, atual cidade satélite no entorno da Capital Federal. Segundo ela, foi lá, nas proximidades da escola, que perdeu um sapato – preso na lama vermelha de um dia chuvoso – e entrou na sala de aula sem perceber que tinha perdido um deles no caminho. Sim, minha mãe foi (ou ainda é) Professora. Ela exerceu esse nobre ofício em escolas públicas até se aposentar nos anos 1980.
Aliás, Cimyrames foi a um só tempo, mãe, alfabetizadora e professora. Sim! Minha mãe alfabetizou a mim e a meus dois irmãos numa escola. Além disso, foi professora primária dos três filhos. Há privilégio maior? Quantas pessoas no mundo podem afirmar “tive um mãe-professora e uma professora-mãe”. Uma das poucas memórias que ainda sobrevive em sua mente, repetida quase à exaustão, tanto em nossas conversas ou com familiares, é a do período em que foi professora. Mais especificamente de um episódio muito especial para nós dois. Ela conta que levava as provas dos alunos para corrigir em casa e que eu fui o único filho a ajudá-la naquela exaustiva tarefa. Para minha satisfação e alegria ela não se cansa de dizer (e repetir) que me considerava um ótimo secretário, mesmo com tão pouca idade, já que colocava todas as provas em ordem alfabética.
Mas, o que me deixa muito orgulhoso da minha professora-mãe foi uma lição exemplar que recebi em sala de aula, e que guardo como a um tesouro. Não, não foi um aprendizado de história ou geografia. Foi uma grande lição de vida. Aos sete anos, tendo minha mãe como professora, eu me achava a segunda maior autoridade ali na sala de aula.
Eu era ninguém mais, ninguém menos do que o filho da professora. Imaginava que teria toda a sorte de privilégios e sua atenção só para mim. Mas, logo descobri que estava enganado. Desde o primeiro dia de aula, ela nunca me chamou de filho no ambiente escolar. Jamais me diferenciou dos outros alunos. Eu era apenas mais um aluno daquela escola pública. Tratava-me como tratava todos os outros. Igualmente, sem distinção.
Certo dia, ao me dirigir a cantina, disse à merendeira:
– Tia Mônica, vim pegar um café para a professora Cimyrames.
– Professora o quê menino, sua mãe!! – ela falou com ar de repreensão.
– Não, tia, é para a minha professora mesmo.
Consolidava-se ali, mais um dos múltiplos valores, princípios e aprendizados que a melhor professora de toda a minha vida me transmitiu naquele ano e, em outros tantos, até os dias de hoje.
Semana que vem vou reencontrá-la.
– Bença mãe!
– Deus te abençoe meu filho! Deus te faça feliz…
*CARLOS ALBERTO (BETO) BARRETTO, jornalista