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Seu Tonho Torres entre memória e delírio
- José Nêumanne Pinto
Após 12 anos escrevendo-o, o romancista baiano lançou em 2021 mais um texto seminal na ficção brasileira narrando trajetórias interna e externa no êxodo de um menino sertanejo da roça à praça
Quebrando um silêncio de 15 anos desde a edição de Pelo Buraco da Agulha, em 2006, o escritor Antônio Torres, nascido em Sátiro Dias, que já foi Junco no sertão da Bahia, repórter em Salvador e publicitário de sucesso em São Paulo, lançou de Itaipava, na Serra Fluminense mais um romance. E este o põe num lugar na estante das maiores obras de ficção do Brasil, seu 18º livro é também a 12ª obra de um nível comparável com o das grandes narrativas que retratam a fuga de roceiros pobres para grandes cidades onde tentam sobreviver e empurrar de barriga cheia a chegada da Indesejada das Gentes. No universo onde brilham o engenho e a arte Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Ismail Kadaré, Graciliano Ramos, Jorge Amado, que saudou sua estreia com júbilo e entusiasmo, e José Américo, que fez questão de registrar por escrito sua supina admiração, Torres inovar em texto e contexto em sua mais recente aparição no universo das letras. Em Querida Cidade, ele recorreu aos truques do cinematógrafo dos irmãos Lumière, apoiando o esqueleto de sua estória em fusão em vez de cortes e planos. E deixando a cronologia por conta de citações de filmes, peças de teatro, livros de poesia de bancada e, sobretudo, grandes sucessos do cancioneiro popular, em que se destacam os sambas-canções que fizeram enorme sucesso à época em que ocorreram os fatos narrados e os delírios consumados. A cultura do narrador atinge a posição de enciclopédia, exigindo a presença de um memorialista de escol, mesmo quando não esteja citando literalmente a lembrança do personagem. Isso, é claro, exige uma cultura proverbial e um conhecimento detalhado das obras de uma época em que o Brasil viveu o apanágio do cancioneiro popular, particularmente os favoritos dos notívagos do samba-canção e a turma do sol e do barquinho no mar da bossa nova.
Seu Tonho, como o chamo desde que nos conhecemos, quando eu estreava no jornalismo e ele se destacava na publicidade. E, já ficava famoso, então, como ficcionista de primeira linha à época dos festivais de Música Popular na Record e dos filmes de Godard da geração Paissandu, pois já estava de mudança para o Rio, antes de morar na Serra Fluminense, onde vive hoje. E agora desloca-se para o Rio nas noturnas sessões semanais da Academia Brasileira, de que é membro. Ou para o exterior, para onde é sempre convidado para atuar em encontros com os papas da literatura mundial. E foi perto de Petrópolis e Teresópolis que ele afiou seu estro para merecer a definição magistral da também romancista e também acadêmica Nélida Piñon, que flagrou seu grande feito como escritor. Pungente ao narrar as dores de seus protagonistas carregados de medo, saudade e desilusão, dores atenuadas com “subterfúgios que a história quer silenciar”. A autora do genial Um Dia Chegarei a Sagres, publicado à mesma época do último romance de Torres, mexeu nessa definição – como sabe fazer com maestria – no segredo capital da convivência dos enigmáticos arquétipos urbanos presentes no tecido textual dele com a pequenez, mesquinhez, racismo e outros preconceitos encontrados em cenários e seres irreais tirados da realidade com a beleza, a solidariedade e a magia do bem.
Entre a memória e o delírio da obra se permanentemente altos de Torres convivem com o prazer de uma leitura comovente da beleza da língua de Camões, Bilac e Castro Alves, baiano como ele, mantida em sua integridade nos grotões dos sertões com aquele irresistível sabor de antiguidade e permanência. Que não se perderam com as importações de outras falas e outras culturas nos espaços urbanos, onde também habitam os seres e costumes reproduzidos ou criados por nossa ficção mais admirável e lúcida. O amor à urbe construída pela mão de obra de pedreiros e operários braçais também se manifesta na arte fulgurante de Antônio Dias, Tarsila do Amaral. Cândido Portinari, Aldemir Martins e Antônio Bandeira. E essa beleza consta do próprio título da obra de Torres: querida é a cidade prometida, não a roça abandonada. Mesmo tendo o guri de dez anos que a abandonou para acompanhar um parente quase desconhecido. E e à qual voltou para saber por que razão o pai abandonara a família em busca dessa miragem, que nunca mais será como antes nunca fora. Jamais tal segredo será revelado. Mas, seja qual for o desfecho, nunca trairá o amplíssimo significado semântico do verbo querer, com tudo o que significa como sonho, sinônimo de fiasco e também de realização. Ao abrigo dessa senha mágica, propiciada pela amada língua portuguesa, a saga do menino só será cumprida se nela permanecerem na fusão cinemática o sonho, o suor, as lágrimas, a dor e o prazer que nossa boa literatura revela, mesmo ao esconder.
Este leitor, beneficiado com tudo o que de generoso e sórdido contém o Brasil mais profundo dos sertões do Semiárido e outros quaisquer, vividos na própria vida e nas existências que não existiram na realidade, mas se produzem na ilusão como na desilusão, vem a público manifestar a profunda dívida de gratidão a essa leitura magnífica. Foi um prazer enorme conhecer mais essa faceta de seu talento, pareceiro.
*JOSÉ NÊUMANNE PINTO, escritor e jornalista