Libel SanRo/Pixabay
No petshop, sem cachorro
- Carlos Castelo
Preguiça de domingo à tarde. Vou folheando velhos álbuns que a mãe me deixou. Logo, um fato chama atenção: não tenho uma foto sequer com os cães que me acompanharam por tantos anos. A razão desconheço, mas não deixou de me entristecer.
Como não existir um registro da nossa primeira companheira animal, a collie Cibele? Ganhamos a “Lassie” ainda criancinhas, sob o compromisso de alimentá-la, escová-la e ministrar os comprimidos de levedura de cerveja para o pelo brilhar.
Anos depois, arrumamos um namorado, de bela pelagem negra, para que ela pegasse cria. O cachorro foi levado à nossa casa bem no dia de um Brasil x Argentina, valendo vaga na Copa do Mundo. Não faltaram tentativas por parte do totó para virar pai. Porém, a cada estrondo dos foguetes, o bicho se enfurnava na casinha todo tremelicante. Cibele morreu virgem.
Outro que inexiste nos álbuns é o inesquecível pastor alemão Tom. Foi batizado por minha mãe, em homenagem ao cachorro de Santa Teresinha do Menino Jesus. Mas de santo não tinha nada. Era feroz como um tigre. Certa madrugada, voltando de uma festa, para abrir o pesado portão de casa, coloquei o pé para dentro da garagem, a fim de melhorar o apoio. Ao puxá-lo de volta, não havia mais perna da calça; Tom havia esmigalhado com os dentes.
O inesperado é que, com o tempo, foi se adoçando. Chegou a conviver pacificamente com Kaled, o gato que pertencia a meu pai. Infelizmente, na velhice, Tom foi acometido por uma espécie de demência e nem engolir a comida conseguia mais. Era eu quem o alimentava, como uma mamãe-águia, colocando no fundo de sua garganta as refeições.
Um dia veio Dali: um típico exemplar de terrier escocês, extremamente mal-humorado e que odiava crianças. Fiquei encarregado de levá-lo ao petshop para o banharem e tosquiarem.
Na primeira ida ao salão, prevendo que passaria por constrangimentos, Dali não topava entrar no carro nem em troca de um fêmur de dinossauro. Tive que acomodá-lo, preso à coleira, no porta-malas da perua. Ao ganharmos a rua, sobreveio o fedor. O escocês tinha transformado a traseira do automóvel numa fossa séptica. A catinga penetrou de tal maneira que nem a melhor lavagem com cristalização da cidade a debelou. No fim, foi preciso vender o veículo.
Mas o certo é o certo. Se era para levá-lo à tosa, ele iria à tosa. Meti-lhe uma fralda e o alojei ao meu lado no banco do carona. Chegando ao shopping onde ficava o petshop, resolvi não expor o amigão ao ridículo. Livrei-o do fraldão e fomos, em pique de marcha atlética, rumo à loja. A velocidade imposta por mim era para evitar que ele defecasse, pois era esse o seu modo de demonstrar contrariedade.
Segui no mesmo sprint ao subir a escada rolante. O Dali, linguinha de fora, vinha atrás de mim. Daí ouvi a voz pesarosa da senhora, alguns degraus abaixo de nós:
– Ah, moço, pelo amor de Deus, que coisa mais nojenta!
Ao me virar, a estapafúrdia cena: o cachorro continuava subindo e correndo. Só que, ao mesmo tempo, cagando. A pobre mulher tentava se equilibrar por entre a sujeira que saía das ranhuras da escada, feito bagaço de cana da moenda.
Definitivamente, eu estava no petshop, sem cachorro. Mas foi das poucas vezes que fiquei sem um dog na vida.
*CARLOS CASTELO, jornalista
(Texto publicado no Estadão)