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Lembrando Godard
- João Galvão Neto
O cinema mundial perdeu um dos seus diretores mais importantes. São poucos os que marcam um momento de mudança na história de sua arte. Godard foi um deles. Não tenho capacidade de fazer uma análise de sua obra, mas apenas de comentar, como aquele que vai ao cinema beber nas novas formas de expressão cinematográfica.
Quando alguém fala em Godard, me vem à lembrança um dos muitos momentos tristes da censura em nosso país. O filme Je Vous Salue Marie (Ave, Maria, no título em português), de 1985, foi censurado no país, em 1986, por José Sarney – o presidente de então, que atendeu a um “pedido” da Igreja Católica que considerou o filme ofensivo ao Cristianismo, seguindo a condenação da obra feita pelo papa João Paulo II.
A música popular brasileira, uma das trincheiras da defesa da liberdade de expressão artística citou Jean-Luc Godard em Selvagem da banda Paralamas do Sucesso:
O governo apresenta suas armas
Discurso reticente, novidade inconsistente
E a liberdade cai por terra
Aos pés de um filme de Godard
E Eduardo e Mônica da Legião, no texto de Renato Russo:
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver um filme do Godard
Assistimos ao filme proibido, numa convocatória boca a boca, em ambientes universitários. Todos que lutavam por liberdade de expressão estavam lá. Naquele mesmo período, o naturalista Augusto Ruschi, envenenado por veneno do sapo dendrobata (também se grafa dendróbata), foi salvo pelo cacique Raoni e o pajé Sapaim, após uma pajelança. Ruschi morreu tempos depois, mas sem nenhum vestígio do veneno do sapo e sim por cirrose hepática da qual sofria há anos.
Naquele ano de 1986, apresentei um show musical na Janela do Projeto Pixinguinha, no Teatro Alberto Maranhão, e apresentamos a canção “Pajelança”, escrita por mim e Babal Galvão, relacionando o veneno do sapo com a censura espúria às manifestações artísticas e pedindo para todos “as poções de sábia magia”. Que a censura tenha sido erradicada de vez por Raoni e Sapaim. Viva Godard!
Pajelança
(Babal Galvão-João Galvão)
Je vous salue, Godard
Je vous salue, Marie
Para os mesmos dendrobatas
Vamos chamar Sapaim (Raoni)
Já nos bastam vinte anos engolindo tantos sapos
Ratos, mosquitos, morcegos, nos cinemas e teatros
Eu quero pecados originais sem censura
Eu quero poder escolher a minha própria cultura
Trago após gole já nos embriaga gole após trago
Tragam o que é preciso do Xingu, de Paris ou Santiago
Discos, livros, filmes, ritos, poções de sábia magia
Atropelai de saber a moral da hipocrisia Babal-João Galvão
*JOÃO GALVÃO NETO, professor de línguas e compositor
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