Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA O Sol de Edilene

FotoshopTofs/Pixabay

O Sol de Edilene

  • Heraldo Palmeira

O Sol nasce para todos, principalmente nos janeiros do Nordeste. Num condomínio de veraneio de classe média, mar lá distante, sentei-me à beira da piscina numa segunda-feira. Leitura e uísque à mão, em pouco tempo estava envolto pelos grupos sociais organizados com absoluta rigidez casual.

Meninos e meninas se separam rigorosamente pelas faixas de idade e se mantêm distantes na hora de nadar e tomar sol. Todos se juntam de noite ao redor de mesas de conversa e jogos diversos – de sedução ou de pura infantilidade, dependendo da idade.

Num canto, mulheres que passaram dos 40 oscilando entre os modelitos perua ou boneca velha. Biquínis extravagantes, maquiagem pesada, chapéus meio ridículos, óculos muito ridículos de tão grandes e cabelos alérgicos a água, unanimemente no modelo palha porque destruídos por rituais de tinturas, escovas e chapinhas que beiram a psicose. Todas já passaram por procedimentos dermatológicos pesados ou pelo bisturi, pois envelhecer é verbo retirado do dicionário muito antes da última reforma ortográfica. As bocas de todas parecem picadas por abelhas da espécie botox. Reclamam da vida e da falta de dinheiro, embora não pareçam ter problemas financeiros sérios, e sentam o verbo nas desafetas. Veneno puro!

Mais perto de mim, o grupo das senhoras que passaram dos 60. Falam muito baixo. Mas os risinhos nervosos parecem revirar o baú dos pecadilhos que cometeram nas penumbras das décadas de 1950 e 60. Algo como requebrar os quadris às escondidas, guiadas por Bill Halley, Elvis e Beatles. Fico na dúvida se alguma delas tenha sido adepta dos Stones.

Em pouco tempo, o tema muda, as vozes ganham volume para tratar de um problema entre uma delas e a filha. Nesse momento, a decana do grupo posta-se como matriarca e dá a palavra final em absolutamente tudo. “Faça assim, faça assado”. Parece que não é permitido dizer nada além de amém para ela. Tanto que ninguém ousa reclamar dos bobes solenemente instalados no cabelo da velha senhora, pifiamente escondidos sob um lenço.

No lado de lá da piscina, o grupo das ninfetas domina a cena. Todas se chamam Patrícia, Bruna, Silvia, Juliana, Cláudia, Giovana, Fernanda, Camila, Anita, Tereza, Luíza, Ana, Maria Isabel. Todas entre 13 e 15 anos incompletos, falando de futuro sob aquela óptica decorada nas salas dos colégios caros que frequentam. Todas valorizando as dietas alimentares que não as deixaram livres de celulites e estrias – que elas nunca me ouçam. Todas interessadas em meninos batizados Felipe, João Henrique, Eduardo, Fernando, Diego, Carlos, Pedro, Roberto. Todas falando de filhos antecipados com autoridade impressionante.

Uma delas, com ênfase e cara de descolada, garante que sua filha vai tocar guitarra e as amiguinhas ficam deslumbradas. Quase peguei meu Moleskine para fazer anotações e marcar as datas de um encontro com o futuro, na estreia dessa Eric Clapton de saias. Nem cheguei a me mexer na cadeira porque lembrei de algo óbvio: se depender do gosto musical da jovem “mãe” e de toda sua geração, a guitarra não sairá da prateleira da loja. Ninguém precisa de guitarra em músicas que só falam de rapariga e cachaça, com as respectivas suítes raparigueiro e cachaceiro.

Súbito, os “avós” da guitarrista inaudita chegam com o “tio” temporão da artista. O menino mal completou um ano de idade. Como a família tem posses, uma mulata pobre, a ninfeta mais linda de todas, faz o papel de babá. A sinhá branca, perua por excelência, é implacável com sua mucama moderna na distribuição de tarefas e no jeito de dar suas ordens.

O sinhô seu marido, depois de perguntar com desdém “Como é seu nome, mesmo?”, divide comigo, ali na beira da piscina, a revelação que sua mucama se chama Edilene. E lhe entrega o sinhozinho, “tio” da guitarrista que nascerá dali a dez anos.

A sinhá atravessa a lâmina d’água para encontrar seu grupo, aquele das mulheres apicultoras. Mantém um olho na colmeia e outro no ambiente, fiscalizando a distância regulamentar entre o sinhô e a mucama. Afinal, apesar da tatuagem que lhe confere um ar de modernidade retrô dentro do biquíni, ela não tem qualquer chance diante do magnetismo, da plástica e dos cabelos maravilhosos da menina.

O sinhozinho-“tio” começa a berrar para entrar na piscina. A ninfeta mais linda de todas tira blusa e short e se apresenta num biquíni sumário. Branco, contraste absoluto com sua pele. O pequenino é o último a se calar e por instantes eternos só se ouve o barulho da água batendo nas bordas da piscina. Aquele corpo escultural, chocolate, jambo – sei lá que cor endiabrada era aquela –, soa como ofensa para todas as outras ninfetas, peruas, bonecas velhas e senhoras ocupadas em queimar seus couros. É nessas horas que o uísque mostra seu valor!

Um dia, li em algum lugar uma explicação genial para a diferença entre ninfeta e lolita: a lolita é a ninfeta com plena consciência do poder que tem. Para felicidade geral daquela nação de bronzeado sazonal, Edilene continuava ninfeta. Inocente da cabeça aos pés. Afundou num cantinho da piscina com o bebê da sinhá carinhosamente no colo e sumiu na paisagem.

Na verdade, ela estava encantada com a conversa das ninfetas brancas do outro lado da piscina. Todas, meninas da sua idade e sem qualquer semelhança visível. Distantes um oceano da sua dura realidade, onde as amigas são Maria José, Das Graças, Das Dores, Da Luz, Biluca, Dalva, Judite, Chiquinha, Daiane, Suellen. Onde escola é ficção, comida é dúvida cotidiana e os meninos se chamam Francisco, Zé, Raimundo, Manezim, Bastião, Maicon, Wanderley, Diolindo, Francinaldo. Meninos que nunca querem romance porque não tiveram chance de entender do que se trata. E os filhos podem reservar passagem para o mundo pouco depois da primeira menstruação.

Talvez Edilene acreditasse que nem tinha direito àquele sol que nascera para todos, poucas horas antes. O único “para todos” que ela conhece se escreve Paratodos, é jogo do bicho presente nas esquinas da periferia onde nasceu. Ali, no território das patricinhas, das sinhás brancas, das senhoras donas da verdade ninguém teve sequer a delicadeza de arredondar seu nome para Leninha. Seria perfeição demais para uma mucama, a mais linda de todas as ninfetas.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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