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Sagrada família
- Carlos Castelo
Família. Esta era a palavra que Eládio dizia sempre de boca cheia. Tinha recordações ótimas, a começar da infância com os primos Enoque, Leonaldo e Eliete. Os passeios ao Museu do Ipiranga, os banhos de mar em Santos, os bailinhos na garagem da casa dos tios Samir e Adelina. Cresceram juntos, estudaram na mesma escola, viajavam para os mesmos destinos.
Só depois que começaram a namorar houve um afastamento natural. Ainda assim se esforçavam para promover encontros frequentes. Houve até uma vez, antes dos bebês chegarem, que foram, em comitiva, para a Pousada do Rio Quente. Não se divertiam tanto desde o ensino fundamental.
Meses mais tarde aconteceu o réveillon onde a família se reuniu numa casa alugada, via Airbnb, na praia de Baraqueçaba. Pé na areia, seis quartos, churrasqueira, piscina, salão de jogos. Apesar do local ser incrível, infelizmente foi o momento em que Eládio notou que o cristal se partira.
Ali pelas duas da manhã, do primeiro dia do ano, como rezava a tradição familiar, montaram a mesa de truco na varanda. Sentaram-se para jogar Enoque, Leonaldo, Eliete, Eládio e os respectivos cônjuges. Ali pela quarta rodada, Eliete, que era a mais boca suja do grupo, soltou um palavrão na cara de Santina, mulher de Enoque. Devido ao alto consumo de espumante, o impropério passou um pouco dos limites. Santina ficou visivelmente magoada e se levantou da mesa. Enoque foi atrás. Nunca mais a irmandade foi a mesma.
No ano seguinte, houve uma tentativa de reconciliação no aniversário da filhinha de Leonaldo, Maria Eduarda.
Santina e Enoque prestigiaram o evento no Bufê Gambazinha Cheirosa, mas passaram a festa inteira conversando com uma palhaça da empresa de entretenimento infantil. Fonseca, marido de Eliete, foi até o casal e ofereceu brigadeiros, numa tentativa de armistício. Santina aceitou. Só que Eliete avaliou que a cunhada comera o doce fazendo cara de nojo. Cortaram relações em definitivo.
Eládio era o mais preocupado com a união familiar. Viu no episódio do brigadeiro um sério risco à concórdia entre os consanguíneos. Santina e Enoque já não frequentavam mais nada. Leonaldo e a esposa Karen, por seu lado, se melindraram com o clima gerado na festinha de Maria Eduarda e esfriaram com o clã. Eliete e Fonseca haviam sumido.
Foi então que Eládio decidiu convidar todo mundo para um festão pelos seus 40 anos. A efeméride, com certeza, traria a paz de volta ao núcleo. Agendou o salão de festas do condomínio, com um mês de antecedência, para não haver nenhum tipo de ruído na celebração. Encomendou as carnes, reservou os barris de chope, fez ele mesmo a decoração (o destaque era o nome da família escrito em uma gigantesca corbeille de flores).
A festa aconteceu. Contudo, só com a presença dos vizinhos do prédio e os colegas da firma. Não houve participação de parentes, exceção feita à tia Có, sua madrinha, já entrada nos 80 e tantos outonos.
– Família… – murmurou Eládio, se olhando no espelho após o churrasco.
E concluiu:
– Agora, quem vai ser meu acompanhante na colonoscopia?
*CARLOS CASTELO, jornalista
(Publicado no Estadão)