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Milho aos pombos
- Heraldo Palmeira
Da vidraça do restaurante onde o café da manhã era servido no meu hotel, na avenida Atlântica, podia ver o dia radiante que amanhecera no Rio. Pessoas de todas as idades passeavam pelo calçadão, aproveitando a brisa agradável que soprava do mar do Leme.
Muitos cachorros ajudavam a manter um certo “traço cultural” da cidade: calçadas repletas de “granadas” prontas para alvejar solados. Fama compreensível, pelo fato de uma maioria de “tutores” – esse é o título nobre que se dá hoje em dia para os “donos” de antigamente – em footing seguirem fazendo cara de paisagem, mesmo depois que seus totós deixam rastros emporcalhados de suas “ações militares” a céu aberto e no caminho alheio.
Na esquina, uma obra no passeio instalara desde cedo a equipe da prefeitura. Doze homens trabalhando duro, vestidos naquelas roupas pesadas de cor laranja; todos negros. Os de pele mais clara, mulatos, em roupas comuns, eram os motoristas dos dois caminhões e o que parecia supervisor de todos, que quase nada fazia além de conversar animadamente sob a sombra de uma pequena árvore.
O homem da britadeira vibrava o corpo desde o primeiro brrrrrr. Seguiria assim horas a fio, com aquele surrado protetor auricular que certamente pouco isolava o som massacrante da ferramenta. Os olhos pareciam condenados ao risco de lascas de pedras e outros resíduos, talvez porque fosse dia de folga ou do santo padroeiro daqueles óculos transparentes de proteção. Anotei no caderninho para consultar depois a Folhinha do Sagrado Coração de Jesus a respeito.
A poucos metros, três outros colegas também sem qualquer tipo de proteção para ouvidos e olhos, iam removendo com picareta, alavanca e pá a areia afofada pela britadeira dentro do duto aberto no desenho de pedras portuguesas, como se um grande tratamento de canal estivesse sendo feito naquela boca de calçada diante do mar. Aos poucos, cacos de PVC iam aparecendo, dando mostras do exato estado da canalização pluvial que passava por ali, e que parecia ser a razão da obra. Pensei no quanto ficaria ampliado o “traço cultural” da cidade, caso aqueles homens estivessem recuperando algum trecho de esgoto cercados de “granadas” caninas.
Não conheço a legislação para esse tipo de trabalho, mas duvido que o homem da britadeira estivesse cumprindo os intervalos de descanso a que deve ter direito. Seguia movido pelo costume que todos nós temos de pouco ligar para as prescrições indispensáveis à nossa saúde ocupacional. Como fazemos diante de um computador. Ou, qual de nós se levanta a cada 50 minutos de trabalho, para descansar distante da telinha os dez minutos recomendados? Ainda mais se a tarefa estiver prazerosa.
A garçonete simpática me devolveu à realidade com o croissant tradicional daquele lugar “parisiense”. Apenas uma vidraça fumê, por onde escorria a famosa cascata de fogos em cada réveillon, era suficiente para separar dois mundos.
Do lado de cá, um ambiente refrigerado, exclusivo e circunspecto, aberto a pessoas com a sorte de encontrar caminhos mais favoráveis. Do lado de lá, o sol escaldante do quase verão carioca incapaz de inibir o sorriso e a alegria contagiantes naquela ponta de calçada – talvez a sorte, por ali, vivesse escondida na insistência da esperança.
A porta principal do hotel separava aqueles dois mundos de forma irredutível, onde o capitão porteiro, mensageiros e seguranças eram os guardiões visíveis para inibir qualquer equívoco do sistema de classes. A imponência acachapante de colunas, hall triplo, lustres gigantescos, flores, quadros, madeiras, metais, couros e veludos era o cenário da encenação do grande teatro desse “tudo bem coletivo” cambaleante.
O jornal do dia gritava em letras impressas todo o caos cuidadosamente dividido em editorias. Agora coube a um dos mensageiros me trazer de volta à realidade, avisando que o carro da empresa já estava me esperando. Cruzei aquele pórtico dos dois mundos e fui levado pelo motorista até o veículo, olimpicamente estacionado sobre o calçadão – os guardas não se metiam com essa “facilidade” do hotel famoso, ele me tranquilizou.
Sob a mesma pequena árvore onde o supervisor dos operários conversava, havia um banco de alvenaria onde um velhinho, sentado e alheio a tudo, estava ocupado em dar milho aos pombos. Um rei cercado de súditos felizes. Mais uma alegoria do Carnaval diário que ajuda todo mundo a escapar coletivamente.
O motorista me abrira a porta traseira do sedã luxuoso, gentileza do cliente que me aguardava no Centro. Dei uma tapinha em seu ombro e abri a porta da frente rumo ao banco do carona. Era ali o meu lugar preferido de puxar prosa e transitar menos tenso por uma cidade conflagrada.
Estranhamente, enquanto o carro já rodava macio pelo Aterro do Flamengo, procurei manter aguçado o meu ângulo de visão. Não era de todo improvável surgirem bandos armados trocando tiros, algum helicóptero despencar em chamas, militantes fechando o trânsito para protestar, adolescentes fazendo arrastão…
– O senhor quer que eu ligue o rádio? – o motorista é o terceiro em pouco tempo a me trazer de volta à realidade.
– Por favor!
O Rio de Janeiro continua lindo / O Rio de Janeiro continua sendo…, na voz inconfundível de Gilberto Gil. O desjejum impecável que quase ficou indigesto começou a se ajustar àquela manhã espetacular diante da orla mais famosa do país… Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro… Aquele abraço! Olhe o breque!.
– Chegamos, senhor!
E lá fui eu fazendo meu caminho pelo mundo.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural