Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Hotel, a arte de acolher

Foto: davidlee770924/Pixabay

Hotel, a arte de acolher

  • Evelyn Lamoglia

Trabalho em hotelaria há quase 30 anos. Já vi coisas que fazem o capeta mandar CV para vaga de estagiário. Mas, em 30 anos, quase todos no Nordeste, não vi um funcionário negar acolhimento a qualquer tipo de gente. Nem por raça, cor, religião, sexo ou condição física ou mental. E olha que a formação deles não é lá grande coisa. Aqui, mea-culpa, falhamos nós gestores, empresários e escolas de formação. Trabalha-se em hotelaria quase que no instinto, o que é muito ruim ou muito bom.

Sim, já vi a Hotelaria acolher a senhora cheia de manias que não aguenta mais sua família e quer um tempo de paz, a mocinha que quer sossego para ver se desiste do suicídio, o político que quer encontrar sua amante sem sobressaltos, o paciente que precisa de cuidados e atenção que sua casa não oferece, os casais gays de todas as siglas que precisam de guarida (segundo um famoso site de reservas on-line, já são mais de 171 definições!), o pastor que veio pregar em cidade distante, o padre que trouxe seus fiéis para o retiro, a mãe de santo do interior que encomenda flores para Iemanjá. Já vi recepcionista, quando ainda não existia Google Translator, desenhar uma xícara de chá para um coreano ser atendido ou trazer um aquecedor do salão da manicure da cidade para algum nordestino desavisado que tremia de frio num quarto de uma cidade do Sudeste. Já vi ficarem horas no balcão, madrugada adentro, conversando com um adolescente autista insone sobre as linhas de ônibus de Beagá.

Pior (ou melhor?) que tudo isso, é também ter visto pessoas que se vitimizam e se colocam em posição de defesa do mundo, atacando quem as está acolhendo. A estatística nos liberta e a empatia – e paciência – nos salva. Profissionais da hotelaria são psicólogos sem cátedra. E, como tal, devem ser cegos para as características e idiossincrasias humanas. Assim, somos. E ai de nós se não fôssemos.

A Hotelaria já viu coisas que o mundo de uma só habitação não consegue ver. Seu vizinho é uma entidade separada da sua. A não ser que lhe infrinjam os direitos civis, você não se incomodará com ele. Aqui, cada quarto e quem os habita são problemas nossos e, adolescentes bonzinhos ou rebeldes que os ocupem, todos estão debaixo do mesmo manto de cuidado e atenção.

A Hotelaria já contemporizou contendas, já aliviou dores, já contribuiu para felicidades, já acalmou corações. É democrática, acolhedora, empática, muderninha e sempre plural.

Também já negamos acolhida a algumas gentes, sem levar em conta raça, cor, religião, sexo ou condição física. Pessoas que fazem parte daquele grupo que resolve bagunçar a ordem natural da vida em sociedade, que precisam e recebem reprimendas. Eram, em sua maioria, do modelito tido como maioria: brancos, sãos, heteronormativos, os “normais”.

Tudo isso só para dizer que o tal preconceito bandeirudo e mimizento não se hospeda em nossos hotéis. Nossas casas têm muitos quartos, cada um com a vida real acontecendo linda e cruamente, todos acolhidos apenas como o são, gente comum. Sem bandeiras. Sem mimimi. Talvez, o espaço mais democrático de que se tem notícia e que nos exige atenção para, em razão da nossa prática diária de acolhimento generalizado, não sermos levados a acreditar que não vivemos num dos países campeões em preconceito.

EVELYN LAMOGLIA, gerente geral de hotel

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