Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

A hora da morte

Design Exclusivo 52/Pixabay

A hora da morte

  • Heraldo Palmeira

Crescemos ouvindo que a única certeza da vida é a morte. Impossível negar, extremos que fecham o ciclo. Fato!

Passamos a vida ouvindo as mais diferentes impressões a respeito da morte. Gente que revela pavor, tranquilidade e, até alguns mais corajosos ou deslocados da realidade, indiferença. A gente sabe que ela, essa companheira indesejada, está designada para nos acompanhar espreitando até à hora marcada, mas ninguém quer saber desse assunto. Pra quê, não é?

O mestre Ariano Suassuna resolveu batizar a sua companheira indesejada de “Caetana”. E para não deixar dúvida do grande respeito que lhe dedicava, fez dela protagonista do soneto A Moça Caetana: A Morte Sertaneja, verdadeiro portal sobre a hora certa do destino:

Eu vi a Morte, a moça Caetana,

com o Manto negro, rubro e amarelo.

Vi o inocente olhar, puro e perverso,

e os dentes de Coral da desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel,

os peitos fascinantes e esquisitos.

Na mão direita, a Cobra cascavel,

e na esquerda a Coral, rubi maldito.

Na fronte, uma coroa e o Gavião.

Nas espáduas, as Asas deslumbrantes

que, rufiando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes,

caules de prata, espinhos estrelados

e os cachos do meu Sangue iluminado.

O escritor português Fernando Pessoa, também zeloso de tema tão misterioso (e perigoso), mantinha seus cuidados: “Há três coisas com que um espírito nobre, de velho ou moço que seja, nunca brinca, porque o brincar com elas é um sinal distintivo da baixeza da alma: são elas os deuses, a loucura e a morte”.

É pouco provável existir criatura indiferente à curiosidade de saber como se passa o instante da morte. Talvez aqueles que, de tanto viver em tão profundo risco social, se abandonaram e vagam por aí. Aqueles que, como cantou Alceu Valença em Na primeira Manhã, estão cruzando “ruas, estradas e caminhos como um carro correndo em contramão, como um conde falando aos passarinhos, como um bumba meu boi sem capitão… Um canto demente, absurdo”. As religiões têm suas visões e tentam nos religar ao Divino como possível saída para compreender tamanho mistério que assusta e fascina.

O que nos diz a ciência? Tecnicamente – e friamente –, a morte se estabelece quando respiração e circulação sanguínea param. E são inúmeras maneiras para se morrer, inclusive aquelas lentas, que não são de bate-pronto como a maioria deseja.

O mais comum é que as pessoas com a chegada da morte esperada estejam vivenciando algum estado de entorpecimento, o que talvez conduza a um fim sonolento e inconsciente. Mas bastou um experimento com camundongos na Universidade de Michigan (EUA) em 2013 para mudar o rumo da prosa. Afinal, houve intensa atividade do cérebro entre a morte clínica e a cerebral das cobaias.

Os cientistas observaram um tipo de atividade nos animais bastante similar ao que ocorria com pessoas em estado de consciência que participaram de outros estudos. Por isso, os ratinhos parecem ter revelado que o cérebro fica ativo durante a morte. A dúvida é se essa situação se repete em seres humanos, e em que nível.

O Imperial College London, Inglaterra, realizou um trabalho bastante interessante (2018) para estudar o momento da morte. Os cientistas investigaram possíveis semelhanças entre dois fatores bastante distintos. De um lado, pacientes que vivenciaram experiências de quase morte (EQM) – a pessoa em estado de morte clínica ou próximo dele é reanimada e tem lembranças daquele momento, que são normalmente muito impactantes para a vida a partir dali, inclusive com referência à saúde mental e espiritualidade. Do outro, voluntários que receberam doses de dimetiltriptamina (DMT), droga alucinógena psicodélica encontrada em várias plantas como a ayahuasca – utilizada nos rituais do Santo Daime – ou produzida em laboratório, que provoca diversos efeitos nas funções cerebrais ligadas a afeto, cognição, percepção, humor, bem-estar e felicidade.

Quando o grupo ficou livre do efeito da droga, seus participantes descreveram a experiência utilizando a lista de verificação empregada na avaliação das experiências de quase morte. Para surpresa dos pesquisadores, apareceram muitos pontos em comum, com destaque para “transcendência de tempo e espaço” e “unidade com objetos e pessoas próximas”. Ficou claro que a experiência de quase morte se mostrou bastante parecida com o efeito de um poderoso alucinógeno. Segundo Christopher Timmermann, líder da pesquisa, “Em uma sociedade como a nossa, onde tendemos a negar a morte e tentar varrê-la para debaixo do tapete, acho que essa é uma das grandes lições que a pesquisa psicodélica pode nos dar: como incorporá-la em nossas vidas”.

Mesmo para a mais avançada ciência a morte continua um terreno complexo, apesar dos avanços observados. Um grande aliado dos pesquisadores são os modernos exames cerebrais. Segundo Timmermann, “É muito interessante o que está acontecendo nos dias de hoje com exames cerebrais e como podemos descobrir o que está acontecendo no cérebro […] Para isso, é possível que, em algum momento, nossas técnicas de imagem cerebral se tornem tão avançadas que possamos ler a mente das pessoas para chegar perto de entender quais são os mecanismos cerebrais que sustentam essas experiências extraordinárias e incomuns”.

Alinhada com essa tese, um paciente com epilepsia à beira da morte passou por uma ressonância magnética e foi verificado que havia atividade relacionada a memória e sonhos, algo que se associa à teoria popular de que “a vida passa como um filme na hora da morte”.

É recorrente que pacientes que vivenciaram a EQM relatam um ambiente de calma, serenidade e livre de dor, o que pode significar redução do estresse associado à morte. Há estudos demonstrando que a perda das funções vitais obedece a uma ordem: fome e sede, fala e visão. Audição e sensações de contato físico ficam para depois, talvez significando que no momento final ainda seja possível ouvir e sentir quem está ao redor, embora não se saiba qual grau de sentido as vozes ainda fazem.

É fato que nosso encontro com a “Caetana” é irremediável. Pelo menos, os cientistas tentam mostrar que a passagem pode ter todo esse cunho emocional e chegar até as raias do psicodelismo. Como se mantivéssemos viva a melhor memória daquelas cores vivas dos tempos da contracultura e que elas nos embalarão no momento que o espírito deixar o corpo. Também é fato que somos animais programados para temer a morte, mas essas experiências científicas nos ajudam a compreender melhor o processo final e relaxar um pouco a respeito. Quem sabe os últimos momentos não são tão assustadores, apenas uma viagem inevitável para o desconhecido? Quem sabe não é isso – sair da caixinha para o desconhecido – que realmente nos assusta tanto?

Como até hoje ninguém voltou do outro mundo para dizer como são as coisas a partir da morte, o melhor mesmo é esperar pela hora certa. De preferência, sem pressa. Saúde e sorte!

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