Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

A mãe do rock

Reprodução/James J. Kriegsmann

A mãe do rock

  • Heraldo Palmeira

As artes parecem ter o dom de remediar dores e cicatrizar grandes feridas humanas. A Renascença surgiu em Florença e Siena, em plena Toscana, nos suspiros finais da Idade Média que sufocou diversas sociedades com o obscurantismo e a crueldade da Santa Inquisição.

Já na primeira metade do século 19, a Europa e o norte dos Estados Unidos experimentaram um processo de industrialização que gerou notável desenvolvimento, a partir da mecanização do trabalho como base da produção de bens de consumo em larga escala.

As populações, encantadas, passaram a dispor gradativamente de comidas e roupas manufaturadas, navios a vapor, trens, bondes elétricos, automóveis, telefone, telégrafo, fotografia, rádio, fonógrafo, gramofone, cinema, televisão… Retratos de um progresso que apontava sem cerimônia e grande ânimo para o século 20.

Tendo Paris como palco mais reluzente, seguida de perto por Berlim, Londres e Viena, a Europa superou o conflito franco-prussiano com a explosão da Belle Époque a partir de 1871, período efusivo onde a fé no progresso científico e nos avanços civilizatórios curou as dores coletivas e carregou a festa até o início da Primeira Guerra Mundial (1914).

Aqueles quatro centros urbanos europeus, todos repletos de inovações tecnológicas, alimentaram a Exposição Universal (Paris, 1900), uma grande feira de demonstração das novidades da criatividade humana.

O pós-guerra trouxe grandes novidades na medicina e microbiologia e testemunhou o nascimento dos impérios jornalísticos e a transformação do cinema numa indústria de grande importância na integração do mundo, capaz de influenciar profundamente o comportamento humano contemporâneo.

A história do rock and roll é bem anterior às grandes estrelas surgidas a partir da década de 1950, quando a mídia norte-americana já estava muito bem estabelecida e pôde criar seus mitos a partir do cinema e da indústria da música – e até estabeleceu uma espécie de grande filial na Grã-Bretanha dos anos 1960.

O princípio de tudo exige uma viagem aos Estados Unidos do início do século 20, para rever vivências da miséria humana impregnada de pobreza, abandonos, vícios, racismo, violência contra minorias… Componentes indissociáveis do ambiente de uma economia em declínio, que terminou devastada pela Grande Depressão, propícios a gerar uma música de lamentação de muitas dores. Era um tempo em que as ondas do rádio já se mostravam poderosa ferramenta de integração e de divulgação musical.

Essa música de lamentação transformou-se numa espécie de bálsamo para tratar tantas cicatrizes profundas, disfarçar a falta de perspectivas e acompanhar os movimentos migratórios. Começou a soar nua e crua nos espaços marginais das comunidades pobres, nos campos de algodão e em clubes obscuros. Ou vestida a caráter no ambiente litúrgico das suas congregações religiosas. Devagarinho, foi desaguando no mar poderoso do blues, majoritariamente pelas mãos e vozes dos negros.

Em 1915, Katie Bell Nubin, multi-instrumentista autodidata, pregadora religiosa e colhedora de algodão da região de Cotton Plant, Arkansas, deu à luz uma menina que parecia condenada a um futuro restrito entre os campos de colheita e as igrejas pentecostais que a mãe frequentava. O pai, Willis Atkins, também missionário e colhedor de algodão, era um cantor notável.

Em 1920, com o fim do matrimônio, mãe e filha foram tentar a sorte numa Chicago numa Chicago dominada pelo crime organizado, mas onde também havia empregos e melhores condições de vida. Enquanto Katie seguia sua jornada de pregadora, o blues e o jazz já flertavam para um casamento que se revelaria poderoso. Rosetta Nubin Atkins, sua menininha de apenas seis anos, começou a dar os primeiros sinais prodigiosos nas coisas da música e ficou sensibilizada com aqueles dois ritmos fundamentais da música americana.

Em pouco tempo, já alternava piano e guitarra numa mesma música, enquanto cantava e fazia performances graciosas que encantavam as assembleias dos cultos. Público fiel e notoriedade foram consequências naturais das muitas viagens com a mãe, para cantar em igrejas de diversas cidades.

Já nos anos 1930, Rosetta, também conhecida com um “Sister” religioso antes do nome, era divina na música das liturgias. E profana nos palcos noturnos onde desnudava as pitadas de seus melhores demônios, manifestados numa mistura sem qualquer cerimônia de gospel, blues, jazz, rhythm and blues, country e rock and roll. Barbarizava olhos e ouvidos surpresos com sua música frenética, sempre armada de uma guitarra elétrica repleta de efeitos – a distorção pesada, talvez a expressão sonora mais característica do rock, era uma delas.

Trocou de igreja e casou com o pastor Thomas J. Thorpe, que não aceitava a atividade artística da esposa. Em 1938, ela caiu fora do casamento infeliz, manteve o sobrenome dele trocando a grafia para Tharpe, mudou para Nova York e foi morar no Harlem.

Logo foi descoberta pelo grande caçador de talentos John Hammond, que produzia o famoso espetáculo From Spirituals to Swing no palco do Carnegie Hall, onde ela foi parar ao lado de artistas famosos. Não demorou, estava atuando nos lendários Cotton Club e Café Society, onde se apresentavam Cab Calloway, Count Basie, Benny Goodman, Billie Holliday e o resto da constelação da música.

De contrato assinado com a Decca Records, gravou naquele mesmo 1938 quatro músicas e o primeiro single foi Rock Me (link abaixo), sucesso imediato. Basta ouvir com atenção para ver que o título antecipava o futuro.

Sua gravação de Strange Things Happening Every Day (link abaixo), de 1944, é considerada a gravação precursora do rock and roll e já reunia a formação clássica de voz, guitarra, piano, baixo e bateria. Não deve ter sido à toa que um ainda adolescente Little Richard abriu shows de Rosetta. Ou que ela também tenha tocado com The Jordanaires, antes que a banda passasse a trabalhar com Elvis Presley.

Bill Haley, Carl Perkins, Chuck Berry, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis, Johnny Cash, Little Richard e tantos outros nomes míticos estão registrados na primeira infância do rock. Mas é impossível ignorar que Sister Rosetta Tharpe influenciou – como todos reconheceram ao longo da vida – esses ilustres senhores. Bem como o blues britânico dos mais jovens Eric Clapton, Keith Richards e Jeff Beck. Sem contar gente como Isaac Hayes, BB King, Bob Dylan, Aretha Franklin e Rod Stewart.

Numa entrevista concedida no fim dos anos 1960, ela disse “Oh, essas crianças e o rock and roll! Isso apenas acelerou o rhythm and blues. Eu venho fazendo isso desde sempre”. O próprio Elvis declarou diversas vezes “O que eu faço não é nada novo, os negros cantam e dançam dessa forma há muito tempo”. Também é bom não esquecer que, desde sua origem, a expressão “rock and roll” significava “dançar”, “balançar” ou “transar”, dependendo do momento.

De forma ainda mais ampla, é possível supor que a expressão era associada a movimento. Tanto que, em 1934, o filme Folias Transatlânticas trouxe a participação das Boswell Sisters (trio formado pelas irmãs Martha, Connee e Helvetia Boswell) cantando seu grande sucesso Rock and Roll. A música não tinha nada a ver com o ritmo que hoje conhecemos, apenas fazia referência ao balanço de um transatlântico cruzando o mar. Mesmo assim, parece ser a primeira vez que a expressão aparece relacionada ao ambiente da música.

Totalmente rock and roll, Rosetta Tharpe fez fortuna e não se cansou de quebrar barreiras. Numa época de virulenta segregação racial, ela gostava de dividir o palco com artistas brancos e passou a reunir pessoas negras e brancas em grande comunhão nas suas plateias. Teve romances com homens e mulheres. Divulgou os perigos das doenças sexualmente transmissíveis. O terceiro casamento, com seu empresário Russel Morrison, foi celebrado no Griffith Stadium, em Washington, diante de 25 mil pessoas que pagaram ingressos para assistir à cerimônia seguida de um concerto em seguida, que restou gravado.

Também venceu as muitas resistências do conservadorismo religioso e continuou cantando nas igrejas, ao mesmo tempo em que enchia clubes e teatros. Terminou levando o gospel para o grande mercado da música comercial e inventou o pop gospel.

Mesmo tendo utilizado diversos modelos de guitarra, a Gibson SG ficou associada à sua imagem negra, forte, decidida, e foi companheira de grande parte da carreira, inclusive na última apresentação, realizada em Copenhague, Dinamarca (1970).

Estava vivendo na perigosa companhia da depressão desde a morte da mãe, no ano anterior, e o quadro da saúde piorou com o avanço do diabetes. As complicações da doença levaram a dois derrames, o primeiro logo depois da apresentação na Dinamarca, que terminou provocando a amputação de uma das pernas. O segundo, fatal, em 1973. Tinha 58 anos, vivia completamente falida em Filadélfia, Estados Unidos, e foi enterrada numa cova sem identificação.

A lápide erguida em seu túmulo décadas depois – com recursos obtidos num concerto para esse fim –, traduz o legado musical: “Ela cantava até você chorar e então cantava até que você dançasse de alegria. Ela manteve a igreja viva e os santos se regozijando”. Desde 2008, por decreto do governo da Pensilvânia, 11 de janeiro (dia do concerto para a lápide) é o Sister Rosetta Tharpe’s Day.

Sister Rosetta Tharpe foi uma artista que encarnou o rock and roll muito antes que alguém tivesse qualquer noção a respeito. Por um desses mistérios que seguem incompreensíveis, o nome dela nunca foi reconhecido na maternidade do gênero como deveria: no ambiente da gestação. A glória ficou com os “filhos” que viraram estrelas a partir da mistura de talento, quebra de paradigmas e costumes e força colossal da mídia. Mas, é impossível haver filho sem existir uma mãe. Hey, mama!

* Publicado originalmente no blog Conversas do Mano

– Foto: Rosetta Tharpe tocando sua Gibson SG, em show com Muddy Waters na velha estação de trem de Manchester

Ouça aqui

Rock Me   https://www.youtube.com/watch?v=p9JezItjWIU

Strange Things Happening Every Day   https://www.youtube.com/watch?v=-88l-M0KgkI

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