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Os 7 pecados da Copa
- Sylvio Maestrelli
A Copa do Catar ainda não terminou. Difícil prognosticar quem vai ganhar. A Argentina e a França, teoricamente favoritas? A imprevisível Croácia? O surpreendente Marrocos? Bem, independentemente de quem levante a taça, consigo cravar – sem pestanejar – que este é o pior Mundial que já acompanhei. Supera até o fraquíssimo torneio de 1990 que, pelo menos, teve uma ótima Alemanha campeã (com Matthaus, Klinsmann, Hassler, Kohler e companhia), Maradona, Baggio em sua plenitude, a Inglaterra de Lineker, Camarões de Roger Milla e por aí vai.
Nesta edição, o nível técnico foi assustadoramente baixo. Evidente que houve muita aplicação tática, garra, preparo físico impressionante, entrega. Mas as últimas escolhas de “melhor do mundo” da FIFA (os goleadores Lewandowski e Benzema, nenhum dos dois sumidade) já nos fazia antever que o nível técnico no mundo inteiro está baixo. Faltam craques. O que se confirmou, na prática, nos gramados do Oriente Médio. Para pura reflexão, levantei os “sete pecados capitais” que levaram a esse fraco espetáculo, decepcionante até mesmo para os jornalistas esportivos sérios, que já questionam o futuro do futebol.
Escolha do país sede Em um processo conturbado, com diversas acusações de suborno, corrupção e manipulação de votos, o Catar – país sem qualquer tradição no universo da bola – foi escolhido para sediar o Mundial, superando outros candidatos como Estados Unidos, Coreia do Sul, Japão e Austrália. Por isso e pelas condições climáticas desfavoráveis (o país tem temperaturas insalubres no tradicional período em que se jogaram TODAS as Copas anteriores – junho/julho), a FIFA abriu exceção e o torneio se realizou em novembro/dezembro, interrompendo as temporadas nacionais europeias. E mesmo assim, o calor foi forte a ponto de – também pela primeira vez – os dirigentes permitirem a inscrição de até 26 atletas em cada seleção. De antemão, previam muitas contusões e problemas de adaptação, o que se confirmou. Enfim, interesses econômicos prevaleceram sobre os esportivos. Por tabela, a comunidade internacional protestou contra a escolha, em razão das denúncias de violações dos direitos humanos no país.
Baixa qualidade técnica As zebras pastaram nos gramados por dois fatores simultâneos e entrelaçados: a decadência das grandes potências e a melhora significativa de alguns países que durante anos fizeram parte da periferia da bola, em especial africanos e asiáticos. Foi assustador perceber, dentre os ex-campeões, alguns alertas. A Alemanha não apresentou nada, nenhuma promessa sequer. A Espanha se manteve no enfadonho tiki-taka, sem objetividade – com alguns bons jovens, mas que nesta Copa ainda não vingaram. A Itália nem foi para o Mundial, eliminada pela Macedônia do Norte. O Brasil se manteve na dependência de lampejos do instável Neymar. O Uruguai sequer apresentou a garra tradicional. A Inglaterra, fruto da incompetência de seu técnico, mais uma vez desperdiçou a chance de pelo menos chegar à final, embora tenha agora jovens talentosos.
As exceções ficaram com França e Argentina, não por acaso semifinalistas. O time francês, pela grande renovação imposta também pela necessidade (contusão de alguns craques), mostrou boas revelações – além da confirmação de Mbappé e Griezmann. O escrete argentino, mesmo bastante dependente dos veteranos Messi e Di Maria, ambos em suas despedidas, tiveram promessas confirmadas como os jovens Álvarez e Enzo Fernandez.
Holanda, Portugal e Bélgica, na maioria das vezes coadjuvantes de luxo em Mundiais, também não mostraram futebol convincente por diversas razões. Os Laranjas sofreram a ausência de bons atacantes. Os tugas padeceram de falhas constantes de seus defensores (Pepe, com 39 anos, era o líder da zaga). Os belgas penaram por um conjunto de fatores que incluiu brigas internas, aposentadoria de alguns após 2018 e falta de condições físicas de outros. Fizeram campanhas instáveis, alternando bons jogos e atuações medíocres.
Falta de renovação e aposentadorias É bem verdade que hoje temos uma longevidade maior no futebol, graças aos avanços da preparação física e da medicina esportiva, dentre outros fatores. Mas ficou clara a dificuldade que as seleções – inclusive medianas – tiveram para renovar suas equipes. Os veteranos ainda deitam e rolam, sem substitutos no curto prazo. O croata Modric, jogando no meio-campo, parece um menino. O espanhol Busquets dá grande segurança à zaga atuando como quarto-zagueiro, volante e armador ao mesmo tempo. O francês Giroud é o melhor centroavante-pivô do Mundial, seguido pelo polonês Lewandowski. Messi dispensa comentários: lidera, faz gols e dá exemplo, ao lado do fiel escudeiro Di Maria. Thiago Silva, em excelente forma, continua mandando bem na defesa brasileira. Pepe é um leão na zaga portuguesa, O ala japonês Nagatomo parece um velocista. Todos eles dificilmente estarão presentes em 2026. Quem vai ocupar as lacunas deixadas? Isso sem contar com o adeus do fabuloso Cristiano Ronaldo que, visivelmente sem ritmo e, quase certo, vivendo o ocaso da carreira gloriosa, não produziu o que dele se esperava em sua derradeira Copa.
Treinadores sem variações táticas, ousadia e criatividade Nesse aspecto, o Mundial também deixou a desejar e poucas seleções surpreenderam. A cobrança de falta dos holandeses no final do jogo e as substituições para virar um placar adverso de 2×0 contra os argentinos foram obras primas de Van Gaal. A formatação do desenho tático dos croatas, com o “dedo” de Dalic, e a impressão de que a resiliência e a resistência física para suportar prorrogações e pênaltis podem fazer parte da estratégia. A ousadia do treinador japonês Hajime Moriyasu nos jogos contra Alemanha e Espanha em mudar a forma de jogo durante as partidas e ganhar ambas. A corrente inversa ao usual mostrada pelo Marrocos, cujo técnico Regragui adaptou seus jogadores que atuam na Europa ao sistema tático do time Wydad Casablanca, com o qual ganhou o campeonato nacional e a Liga dos Campeões da África.
Do outro lado da moeda vimos absurdos inacreditáveis. Diego Alonso claramente subutilizar De Arrascaeta no Uruguai. Tite abdicar do bom senso com suas equivocadas opções e alterações. Roberto Martínez insistir com Hazard o tempo todo na Bélgica. Os sul-coreanos se lançarem de forma suicida ao ataque contra o Brasil. Southgate substituir Saka contra a França, seu melhor atacante na esquadra inglesa. Podemos afirmar que os deslizes dos “professores”, em sua grande maioria, configuraram “crônicas de uma morte para lá de anunciada”.
Arbitragens Depois de um início promissor, com boas atuações dos juízes na primeira rodada, as arbitragens voltaram ao padrão normal de Copas do Mundo. Ou seja, mesmo com a implantação do VAR e o aprimoramento de tecnologias, a ruindade permanece. Lances capitais são checados, grandes diálogos interrompem as partidas, mas os erros grotescos persistem. E não são poucos, independentemente da fase e da importância do jogo. Bolas que saem inteiramente pela linha de fundo e a partida segue, pênaltis mal marcados ou ignorados, impedimentos mal assinalados e entradas maldosas (dignas de cartão vermelho) desconsideradas continuam fazendo parte da lista de falhas da arbitragem. No jogo entre argentinos e holandeses, Paredes, com o jogo paralisado, bicou a bola na direção do banco de reservas europeus e nada aconteceu!
O único diferencial nessa Copa do Catar foram os acréscimos. Alguns desnecessários – de até quase 15 minutos –, onde gols foram assinalados. Outros não foram dados (a cera marroquina contra os portugueses é um bom exemplo). E mesmo parecendo apenas uma decisão para fazer média com as mulheres, a FIFA escalou um trio feminino, comandado pela francesa Stephanie Frappart, para apitar Costa Rica x Alemanha. Foi uma ótima arbitragem.
Torcedores Foi bem bacana ver o mundo árabe, após as eliminações de Catar, Arábia Saudita e Tunísia, todas na fase de grupos, adotar o Marrocos como sua seleção do coração e torcer pelos Leões de Atlas. Também é sempre gostoso admirar o incessante cântico dos fanáticos argentinos, apoiando sua equipe freneticamente, tanto nas horas boas quanto nas ruins. E a música, a dança e as cores dos africanos de Gana, Camarões e Senegal. Entretanto, o Mundial catari esteve longe de ter seus estádios lotados (os números diversas vezes foram superestimados) e perdeu muito do encanto pela ausência – por motivos políticos e principalmente econômicos, das massas que agitam os estádios, como os hooligans ingleses ou os ultras franceses. Mesmo a torcida brasileira, em bom número, parecia um grupo de zumbis de verde e amarelo, mais preocupado com as selfies para as redes sociais do que em viver intensamente o jogo – postura de turistas, não necessariamente de amantes do futebol.
O Brasil Claro, entre os sete pecados que levaram ao fracasso técnico desta Copa, não poderia deixar de estar presente a Seleção Brasileira. Aquela do ciclo, do processo, dos parças, do titês. Aquela que vive do passado glorioso, ainda assusta os adversários e é reverenciada por milhares de fãs no mundo inteiro por sua história, por seu pentacampeonato, por sua legião de jogadores geniais sob a eterna e inabalável presidência do Rei Pelé. Que já teve vestindo seu manto amarelo craques da estirpe de Zizinho, Didi, Garrincha, Carlos Alberto, Tostão, Gérson, Rivelino, Jairzinho, Zico, Falcão, Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho e tantos outros, mesmo em seleções que não ganharam (1950 e 1982), mas encantaram.
O Brasil caiu com um futebol pífio. Sem alma, com medo de levar cartões. Sem envolvimento emocional com o país. Sem variações táticas realmente ousadas. Vítima da incompetência do treinador e de comissão técnica. Sem comando firme – da dancinha do pombo à fuga do técnico após a derrota foi apenas um jogo. Sem personalidade – os cabelos platinados davam o tom, ditado pelo seu “astro” Neymar. Sem força mental – não havia psicólogo no grupo, apenas gurus de autoajuda. Sem jogar o tempo inteiro – ou atuávamos bem no primeiro, ou no segundo tempo. E, tecnicamente falando, sem meio-campo, o setor que não fez a diferença neste Mundial, onde fizeram uma covardia com o incansável Casemiro, deixando-o sozinho para carregar o piano enquanto Fabinho e Éverton Ribeiro no banco e 9 atacantes no grupo, alguns bastante duvidosos.
Só para aqueles que se vestem de verde e amarelo de quatro em quatro anos – e que não acompanham nosso futebol no dia a dia – o desempenho do Brasil foi aceitável. Para os amantes do futebol, comentaristas sérios, craques do passado que não têm interesses comerciais, “geraldinos” e “arquibaldos” que frequentam os estádios o Brasil foi decepcionante. Principalmente porque a Copa não apresenta nenhuma seleção muito acima das demais, como foram Alemanha Ocidental e Holanda (1974); Espanha (2010) ou França (2018). Ou seja, dava para chegar lá no Catar. Mas, uma vez mais, o ranço contra ótimos jogadores que atuam no país e o protecionismo aos “parças” de campanha nas Eliminatórias e nas Copas Américas provocaram desastres e injustiças já nas convocações.
Levar Raphinha (reserva no Barcelona) e deixar Gabigol (que até podia cobrar penal contra os croatas)? Convocar a eterna promessa Gabriel Jesus, o “artilheiro que não faz gol”? Não ter um lançador em profundidade, como Gustavo Scarpa, e levar o brucutu Fred, reserva no Manchester United? Manter Alisson no gol, sabendo que Weverton e Ederson são muito melhores para defender pênaltis? Chamar Éverton Ribeiro para fazer turismo em Doha? Improvisar um lateral direito na esquerda tendo um zagueiro ambidestro (Marquinhos) que atua pela esquerda? Atuar com apenas um meio campista defensivo (Casemiro) contra um quarteto croata que tem Modric? Perder para o limitado Camarões e não se abalar, considerando o resultado “normal”, devido às circunstâncias – jogar com os reservas? Escalar o aposentado e arrogante Daniel Alves para bater recorde de longevidade e, no delírio, ganhar o último título que faltava à sua coleção? Deixar a armação de meio-campo nos pés de um único jogador, o fraco e calouro em Mundiais Lucas Paquetá? Atuar com praticamente cinco atacantes (nem em 1958 fazíamos isso)? Permitir que Neymar batesse apenas o último penal contra a Croácia, para se consagrar (como nas Olimpíadas)? Erros, erros, erros… Tite abusou do direito de errar. Deu no que deu!
A Seleção Brasileira fecha merecidamente este texto sobre os sete principais motivos para se considerar a Copa do Catar a pior de todos os tempos. A Copa do mau uso do VAR e dos intermináveis acréscimos, dos estádios que vão ser desmontados, de contratos que não foram cumpridos, das proibições, da despedida de monstros sagrados da bola, dos brasileiros de cabeças platinadas, do deserto de talentos. Uma Copa para esquecermos. Como as que temos jogado desde o gol de Henry em 2006. E onde, coerente com os sete pecados, ficamos em sétimo na classificação geral.
Para nós, brasileiros, uma Copa para fechar ciclos. Não por acaso, até o adeus anunciado de Galvão Bueno. Haja coração!
*Sylvio Maestrelli, educador e apaixonado por futebol
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