Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA A rainha de uma era

Camera Press/Godfrey Argent

A rainha de uma era

  • Heraldo Palmeira

É difícil dissociar o século 20 e esta primeira parte do 21 da figura agora quase mítica da rainha britânica Elizabeth II. É fácil supor que tenha sido a pessoa mais famosa e fotografada do seu tempo. É quase certo que ninguém mais dedicou-se a desempenhar o papel que lhe coube na história com tamanho desvelo, dedicação e seriedade. Por isso, muita gente entende que ela abriu mão da vida pessoal em favor da Coroa britânica de forma profunda e inequívoca. Conhecida como “rainha da Inglaterra” na simplificação popular, terminou mimetizando o país enquanto tornou-se sinônimo vivo de todo o seu reino.

Todo esse poderoso conjunto de fatos pode ajudar a explicar a razão de tantas pessoas sentirem a perda como se houvesse partido uma espécie de mãezona coletiva, mesmo a maioria absoluta que jamais viu sua figura miúda pessoalmente.

Elizabeth saiu do rigor cerimonial que lhe cercava para, sem qualquer espalhafato – houve pouca gente tão discreta quanto ela – tornar-se uma espécie de ícone pop. Seu figurino impecável, sua presença poderosa, a capacidade insuperável de administrar crises familiares, a habilidade de nunca sair do tom são qualidades que já estão impressas na história. Essa capacidade de se reinventar pode ser uma pista para explicar o fato de, nos últimos anos, ela ter caído ainda mais no gosto popular por meio de memes de redes sociais tratando com graça da sua longevidade. Colocá-la com essa “intimidade” em todos os lugares por meio de dispositivos digitais pode ter sido uma demonstração sem fronteiras do carinho que despertava nas pessoas.

Quando o mundo perde alguém que teve tamanha presença coletiva por tanto tempo, a sensação de vazio alerta que se foi junto algo sem qualquer chance de repetição e até mesmo continuidade. É natural que seja assim, até porque os tempos sempre serão outros a partir do minuto seguinte. Talvez para sintetizar esse sentimento, em 1422, foi declarada (na França) pela primeira vez a frase “O rei está morto. Viva o rei!” – em razão da morte do rei Carlos VI e o anúncio do seu filho Carlos VII como sucessor –, para demonstrar que a transferência de soberania ocorre instantaneamente após o momento em que é anunciada a morte do antigo monarca. E que a vida deve continuar.

Elizabeth II escolheu morrer no Castelo de Balmoral, Escócia, para onde fez sua última viagem em 21 de julho, retirando-se na companhia apenas de sua equipe pessoal. A propriedade não pertence à Coroa britânica, é patrimônio privado da família real e conta com criação de gado, estábulo, jardins, lagos e extensas áreas verdes. Era um lugar especial para ela: foi lá que viveu diversas fases da vida, como a infância ao lado da irmã Margaret – uma mulher à frente do seu tempo, ligada às artes e que quebrou diversos protocolos reais pelo comportamento liberal e contestador – e muitas férias de verão em família. E onde ocorreu o pedido de casamento pelo príncipe Philip.

No que seria seu celular pessoal, a rainha utilizava um aparelho Samsung que guardava apenas dois contatos: a princesa Anne, sua filha, e John Warren, o gerente de cavalos de corrida da família real. Ambos tinham total liberdade de ligar a qualquer hora e eram imediatamente atendidos. Aliás, a paixão da rainha pelos animais era pública, sobretudo por cavalos e seus cães da raça corgi, que sempre estiveram no seu cotidiano.

Era uma figura surpreendente pelos hábitos frugais, como dirigir um velho Land Rover bastante surrado e comer sobras de comida guardadas em tupperwares. Também era reconhecido o trabalho que realizou na redução das despesas da monarquia, além da organização financeira que deu à família real um perfil operacional de uma empresa de médio porte. Isso terminou propiciando uma análise mais favorável da relação custo-benefício da realeza, embora não impeça que sempre entre na mira dos opositores em períodos de crise.

Ao longo da vida, Elizabeth II foi um poderoso instrumento de soft power (influência pela cultura e imagem) do governo britânico, a ponto de receber 152 visitas de Estado. Além do sentimento de orgulho e unidade política para o Reino Unido, seu reinado transformou a monarquia britânica em um grande atrativo turístico e enorme fonte de divisas.

Para a maioria das pessoas, não é simples compreender o rigor e precisão do cerimonial que cerca a família real mais importante do mundo. Para se ter uma ideia, existe a figura do Earl Marshal (Conde Marechal) do Reino Unido, a quem cabe comandar todas as coroações e funerais. É um posto hereditário mantido na família Howard desde 1672, hoje ocupado por Edward Fitzalan-Howard, o 18º Duque de Norfolk.

Ele assumiu a função há 20 anos e, desde então, mantinha uma reunião anual no Palácio de Buckingham para atualizar os planos da Operation London Bridge (Operação Ponte de Londres), que denominou o funeral de Elizabeth II. A equipe começou a trabalhar com 20 e atualmente tinha 280 pessoas. As reuniões eram realizadas ao longo de horas em mesas instaladas num enorme quadrado, sempre revisando tudo o que deveria acontecer minuto a minuto nos dez dias posteriores à morte da rainha, que fazia amplo acompanhamento e era constantemente consultada a respeito do que desejava em seu próprio funeral. Segundo matéria publicada pelo The Wall Street Journal, além de membros da Casa Real, também participavam representantes do clero, forças armadas, polícia e rede BBC de rádio e TV.

Diante da conhecida obstinação da rainha em zelar pela monarquia e seus rituais, é compreensível sua ativa participação na montagem do funeral de Estado que lhe caberia. Curiosamente, desde o dia da sua morte, Londres, quase sinônimo de chuva, viveu dias de sol radiante.

Logo depois do anúncio oficial da morte, um trajeto com 8 km foi delimitado para que pessoas do mundo inteiro pudessem prestar suas últimas homenagens diante da urna funerária em Westminster Hall, uma das salas mais solenes do Parlamento. No momento de pico, a espera na fila chegou a durar 24 horas. Detalhe: todos que entravam nesse circuito recebiam uma pulseira numerada, para garantir uma ida ao banheiro ou sair em busca de comida e voltar para o mesmo lugar.

Os administradores dos serviços de transporte da Inglaterra anunciaram que estavam diante da maior operação da história, controlada minuto a minuto com a participação de diversas agências públicas dos mais diversos setores, o que incluiu o maior esquema de segurança já montado em Londres, com dez mil homens.

As cerimônias fúnebres confirmaram o prestígio superlativo que ela construiu ao longo de 70 anos de reinado, tendo um sinal claro na verdadeira montanha de flores trazida pela multidão. Durante os diversos cortejos, o aeroporto de Heathrow, um dos mais movimentados do mundo, suspendeu todos os voos para que tudo transcorresse em silêncio absoluto pelas ruas. As placas do trânsito e os semáforos foram simplesmente retirados dos trajetos do séquito ao redor da Abadia de Westminster, para não chamar atenção, em mais um sinal de respeito. Os icônicos ônibus double decker (dois andares) vermelhos pararam e desligaram seus motores durante os dois minutos de silêncio programados para o fim do funeral e respeitados em todo o Reino Unido.

A perfeição britânica para realizar suas cerimônias esteve em cena mais uma vez, oferecendo um evento impecável onde o mais leve movimento ou o mínimo detalhe fazem sentido. Tudo isso sem perder de vista a sobriedade e pontualidade que se tornaram verdadeiros símbolos do reino. Afinal, estavam presentes mais de 500 autoridades internacionais, no que já é considerada a maior reunião diplomática de todos os tempos.

Os corais da Abadia de Westminster (Londres) e da Capela de São Jorge (Windsor) ofereceram um espetáculo musical ímpar durante as cerimônias religiosas. O primeiro, executando peças mais relacionadas com a liturgia do funeral de Estado, para mais de 2 mil pessoas, incluídas as autoridades internacionais; o segundo, um repertório mais ligado ao gosto pessoal da rainha no serviço íntimo familiar, para os 800 convidados.

A presença dos príncipes Andrew, tido como o filho preferido da rainha e envolvido em escândalo sexual com uma menor espanhola que lhe custou a retirada dos títulos reais pela própria mãe, e Harry, seu neto que renunciou aos papéis no alto escalão da realeza em nome de uma vida normal com a família nos Estados Unidos, foram pontos delicados e contornados sem grande alarde.

Por determinação do rei Charles III, na caminhada do cortejo do Palácio de Buckingham ao Parlamento, local do velório, ambos foram proibidos pelo protocolo de usar seus uniformes militares de gala – exceção apenas para a vigília familiar de 15 minutos, no dia seguinte, mas sem a insígnia “ER” (Elizabeth Regina) que distingue os que compunham o serviço pessoal da monarca –, como ostentaram os outros membros da família real. Por isso, os dois caminharam numa espécie de segundo plano como que submetidos a um castigo público, para que ficasse claro que já não fazem parte dos ofícios da família real. Para se ter uma ideia do significado dessa nova condição, os dois príncipes já não podem se dirigir aos demais membros, com intimidade, mas apenas tratando-os por “suas altezas reais”. No caso de Andrew, esse protocolo inclui as próprias filhas, que mantiveram os títulos.

Nos trajetos pelas ruas de Londres, a urna funerária foi transportada numa carreta de armas da Marinha Real, puxada e protegida por um batalhão de fuzileiros navais, por sua vez guardado por um regimento do Grenadier Guards, grupo de elite da guarda real conhecido por suas vestes vermelhas e pretas e grandes chapéus pretos de pele de urso. Nos momentos em que o ataúde com o corpo da rainha foi retirado da carreta para cumprir partes do cerimonial, dez desses homens tiveram a missão de carregá-lo sobre os ombros.

O belíssimo carro fúnebre envidraçado foi especialmente projetado pela montadora Jaguar – uma das famosas marcas automobilísticas inglesas ao lado de Rolls-Royce, Bentley e Land Rover, cujos automóveis completavam a frota ao lado das também nacionais motos Triumph usadas pelos batedores. Ele foi utilizado para levar a urna funerária do Arco de Wellington ao destino final, o Castelo de Windsor. Logo no início do trajeto motorizado, o silêncio foi quebrado pelos gritos e aplausos da multidão, que jogou flores sobre o cortejo durante todo o percurso. Enquanto isso, o Big Ben continuou tocando.

O pônei de estimação e os simpáticos cachorrinhos reais também aguardavam na chegada a Windsor – os cães passarão a viver com o príncipe Andrew, um mínimo detalhe que parece fazer grande sentido, talvez uma mensagem subliminar de reconciliação deixada pela rainha ao seu supostamente filho predileto.

A partir da chegada do cortejo, o sino da Capela de São Jorge tocou 96 badaladas, uma para cada ano de vida de Elizabeth II. O gaiteiro real Paul Burns, que todos os dias acordava a soberana às 9h, teve a incumbência – dada pela própria monarca – de tocar pela última vez para ela, que escolheu a peça O Último Lamento. Foi um momento emocionante ouvir o músico se distanciando da urna funerária e saindo da capela, até o som sumir completamente.

Depois, chegou o momento que simboliza a separação de Elizabeth II da Coroa britânica: o joalheiro real retirou de cima da urna funerária o Cetro da Cruz (onde está o diamante Cullinan I, o segundo maior do mundo e conhecido como Grande Estrela da África), o Orbe do Soberano (globo de ouro cravejado de esmeraldas, pérolas, rubis, safiras e uma ametista, representando o poder da monarquia britânica no mundo) e a Coroa do Estado Imperial do Reino Unido (pesa 1,06 quilo e contém 2.868 diamantes, 11 esmeraldas, 273 pérolas, 5 rubis e 17 safiras).

As três peças foram entregues ao deão de Windsor, colocadas por ele sobre o altar e só serão vistas novamente na cerimônia de coroação do novo rei.

Logo em seguida, Charles III colocou num extremo da urna uma pequena bandeira dos Grenadier Guards, o regimento da rainha.

Na sequência, Lord Chamberlain, o oficial mais graduado da Casa Real e responsável por sua administração, quebrou o bastão de ofício e o colocou sobre o esquife, simbolizando o fim do serviço da soberana morta à monarquia britânica. Esse conjunto de atos solenes completou o processo de encerramento do reinado de Elizabeth II.

A cerimônia religiosa terminou com a urna funerária descendo por um elevador para a área do sepulcro, na capela memorial do rei George VI. O mundo teve ali a última imagem da rainha. Ao fim do dia, o sepultamento ocorreu em cerimônia reservada apenas à família real. Ao descer ao seu túmulo, Elizabeth II finalmente se transportou do mundo real para a lenda.

Hoje, está na ordem do dia falar do empoderamento feminino. Elizabeth II personificou isso aos 26 anos, quando assumiu o trono mais poderoso do planeta de forma inesperada, obrigada a administrar a perda do pai amoroso e assumir imenso protagonismo em um mundo ainda mais machista e conservador do que o atual. Como ninguém, ela compreendeu, personificou e solidificou a liturgia do cargo ao longo de uma verdadeira era, muitas vezes deixando em segundo plano sentimentos de filha, irmã, mãe e avó. Também não deve ter sido fácil manter rigidez e elegância para lidar com as idiossincrasias humanas dos familiares.

Ficaram para trás 15 primeiros-ministros, 7 papas e 14 presidentes dos Estados Unidos em 70 anos de um reinado único e histórico. Fica o vazio deixado por uma personagem de enorme sobriedade, que encarnou como ninguém a monarquia e terminou sua vida como a maior figura pública do nosso tempo.

Neste momento, ainda é difícil imaginar como a monarquia será conduzida sem a mão firme de Elizabeth II. Seu filho, agora Charles III, nunca esteve no coração dos súditos e sempre foi considerado um sujeito atrapalhado. É certo que as rígidas regras do cerimonial imporão o tom de equilíbrio indispensável para seu reinado. A vida deve continuar e a história recomeçou.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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