Por Heraldo Palmeira
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18 de maio de 2025

HERALDO PALMEIRA e KALUNGA MELLO NEVES Alienado delirante

Mindworld/Daniel R/Pixabay

Alienado delirante

  • Heraldo Palmeira e Kalunga Mello Neves

Estamos falando de horizonte ou beco sem saída? “Já sei. Algo a ver com Raul Seixas” – dirão vocês. Compreensível. Raul tinha aquela impressionante capacidade de enxergar artisticamente no escuro. Por isso, “talvez”, “não” ou “quem sabe?” pode ser a melhor resposta. Quem sabe ao certo? Pois bem, que seja o que você quiser. Embora, creio eu, tem mais a ver com o hoje e o que nos cerca para amanhã. Tudo bem, há quem acredite que Raul nasceu há dez mil anos atrás e enxergava, com sua arte, muito além do escuro: o futuro do passado. Vá saber!

Como levar a sério tudo o que vemos, ouvimos, lemos, presenciamos ou alguém veio nos contar? É tanta informação desencontrada que não estamos conseguindo encontrar respostas, separar realidade e narrativa e muito menos decidir o que realmente interessa. Parecemos uma velha mula teimosa bebendo água que não mata sede.

O ímã embutido nessa radicalização generalizada repele o bom senso e atrai o vazio de ideias. “Puxa, tudo mudou de repente!”. Papo-furado! Nós é que fomos lenientes com tanta desordem, perdemos a conexão com quem éramos – mais crentes, menos exigentes, (quase) ingênuos, desconfiados da maldade (que sempre existiu) mas nunca maldosos, tentando aprender a ter opinião…

O problema é que agora o bem está em xeque, algo que corrói qualquer resquício de fé e leva nossas exigências ao nível da impaciência. Parece que chegamos à antessala do caos das relações e ficou mais confortável acreditar nessa balela de que as coisas são como são porque são. A fórmula pronta para quebrar valores que farão falta. O terreno perfeito para preservação da natureza de papagaio que repete alegremente o que desconhece e defende pessoas duvidosas e suas causas cada vez mais degeneradas.

Fazemos parte de uma sociedade que passou a se colocar como se fosse o sal da terra. Que não se acanha de vestir a capa da correição – que não disfarça os trajes rotos e esfarrapados debaixo dela. O retrato da falência decretada pela falta de opinião, pelas maledicências, pela índole desonesta, pela conivência, pela impunidade. O Admirável Gado Novo do poeta agindo em pleno delírio de grandeza.

Por que tantas práticas viraram hábitos e se tornaram naturais? Quem validou? Quantas pessoas conhecidas embarcaram? Espere aí… Eram conhecidas? – nos enganaram ou nos enganamos? Foi mais fácil inventarmos a imagem de que estivemos viajando e encontramos um novo mundo na volta? Nosso comodismo consolidou o velho “deixa pra lá”?

Essa aceitação de que as coisas são como são porque são virou terreno fértil para a montagem de um cenário onde tudo vai sendo relativizado. Há uma tecla de reset para tudo isso? Realmente queremos apertá-la, já que ela pode acionar todos os desconfortos de recomeçar do zero? Também é considerável o risco de uma falsa configuração original programada nesse reset, no melhor estilo “Vamos mudar as coisas para que tudo continue como está” – recomendação publicada em 1958 no romance O Leopardo, escrito por Giuseppe de Lampedusa. Afinal, tudo está solidamente normalizado.

Nossa leniência nos ensinou a dormir com todos esses barulhos e manter os olhos fechados. Pareceu mais fácil fingir não ver muita coisa. Não adianta fugir: fizemos porque quisemos e agora demos de desconfiar até de nós mesmos. Por isso, não me surpreendo quando quase cedo à tentação de ser apenas um alienado delirante. De novo parece mais fácil.

Mais uma copa de vinho e já posso seguir adiante cantando na beira do cais, dançando na chuva, chorando ao cair da tarde de um dia de domingo. Admirando, ainda que de longe, a beleza do que resta para admirar.

Estive a ponto de culpar as tantas copas de vinho, mas dei de cara com Virginia Woolf ao alcance da mão: “Por isso odeio espelhos que me revelam meu verdadeiro rosto. Sozinha, muitas vezes mergulho no nada. Preciso firmar meu pé fortemente, se não, caio do limite do mundo para dentro do nada. Preciso bater minha mão contra uma porta rija, para me chamar de regresso a meu corpo”.

Ando querendo me dar de presente o regresso para mim mesmo e não é um caminho fácil. Talvez haja algum indício de urgência. Afinal, nunca se sabe se é cedo ou tarde demais pra dizer adeus, pra dizer jamais.

Texto incidental   Pra Dizer Adeus (Nando Reis-Tony Bellotto)

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural | KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante

Ouça   Admirável Gado Novo (Zé Ramalho)   https://www.youtube.com/watch?v=t_sUkOXO4zU

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