Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

MÁRCIA LÍGIA GUIDIN Amores Improváveis

Alameda/Heraldo Palmeira

Amores Improváveis

  • Márcia Lígia Guidin

GIRAMUNDO LEU Amores Improváveis

O autor Edney Silvestre nasceu em Valença, RJ, em 1950. Jornalista, trabalhou para Fatos e Fotos, Manchetee outras revistas. Na Rede Globo, como correspondente em Nova Iorque, cobriu grandes eventos. Criou o programa Globo News Literatura, de longa audiência. O primeiro romance Se eu fechar os olhos agora, ganhouo Prêmio S. Paulo de Literatura e o Jabuti como melhor romance de 2010. Traduzido para vários idiomas, alavancou a carreira de escritor, que já tem outros cinco romances, contos e peças de teatro.

Polêmica e estilo Quem não se lembra da polêmica que o prêmio Jabuti criou, ao premiar, em 2010, como “livro do ano”, a obra Leite Derramado, de Chico Buarque de Holanda, e não o próprio vencedor na categoria romance: Se eu fechar os olhos, de Edney Silvestre? Eram dois romances, duas visões diferentes do Brasil e muita ideologia marcando a premiação – pela eleição iminente de Dilma Rousseff dias depois. As editoras de ambos, consideraram gravíssimo o episódio e se indispuseram uma contra a outra e ambas contra o Jabuti.

Mas foi bom para Silvestre, que levou seu primeiro romance a best seller. Muito lida até hoje, a obra falou de homofobia, racismo, crimes e política brasileira num período histórico determinado – o que harmoniza tematicamente com este Amores Improváveis (2021). Desde então, o estilo se aperfeiçoou – com frases entrecortadas, virguladas e longas, que causam inquietação positiva no leitor. E neste romance, com capítulos muito curtos, o ritmo sintático peculiar faz ampliar cenas e a narração. Foi um bom ganho na obra de Silvestre:

Ao embarcarem em Cagliari para uma temporada de trabalho de três anos na América do Sul, com a roupa do corpo e mais os poucos pertences num único baú de couro, ao lado de outros sardos, em seguida juntando-se a genoveses e sicilianos no porto de Nápoles rumo ao outro lado do mundo, Vincenzo e Concetta, agora Vivacqua, não poderiam imaginar suas vidas entrelaçadas à do rapazinho nomeado oito anos antes como Felício Theodoro, já então devida e definitivamente transferido para o Sitio Santa Zita. (p. 19)

Como em obra anterior, Edney fixa-se no Brasil interiorano (aqui mineiro) e analisa a vida adolescente com seus primeiros amores para mostrar a transformação de uma sociedade semirrural, de fim de século, que, marcada por duros valores, se vê modernizada pela proximidade do século XX.

O interesse é o Brasil Assim, o pequeno romance está concentrado em temáticas que, embora já conheçamos bem (do século XIX, escravista, para o XX, republicano, imigração europeia como força de trabalho, mistura de línguas, valores, culinária e moralismos, sobretudo italianos) são tratadas aqui com concisão e firmeza narrativa. Diz o autor que fez muitas pesquisas.

Muitas obras entre nós falam da imigração italiana, árabe, japonesa, judia, húngara, alemã – algumas delas inesquecíveis. A qualidade deste texto, porém, é tentar valorizar algo novo a partir dos amores femininos (não feministas) de sotaque italiano, porém já tão brasileiros numa cultura miscigenada, que se ampliou a passos largos.

A narrativa é dividida em capítulos, em geral de uma página, introduzidos por fotos e imagens escolhidas pela designer do livro, cujo trabalho o autor agradece.

Silvestre traz um casal de italianos sardos, que imigra no fim do século XIX para o interior de Minas, onde, como tantos outros, foi tratado sob os vícios da escravidão. E como outros tantos, o casal encontraria o caminho de subsistência em outro local, num armazém de secos e molhados, na fictícia cidade de Ourinho. Ali criarão as quatro filhas (duas gêmeas ao meio da prole), protagonistas da obra: são elas que vivem seus amores improváveis.

“Improváveis” o autor define ao fim da obra, quando afirma que “a primeira pessoa a quem associei as palavras improvável e amor”

(…) era uma voluptuosa mulher italiana, que esperava o amante, cidadão casado e pai de família, com a porta aberta altas horas da noite. Quando saí de lá, já adolescente, ela e o senhor O., provavelmente continuavam a se ver pelas madrugadas, num improvável amor estável e satisfatório (…) (p. 181).

Amores improváveis são ilícitos, ocultos, desprovidos de senso moral ou limites. Mesmo assim, seriam intensos ou longos. A epígrafe de Gabrielle D’Anunzzio reforça ao leitor essa definição:

Nossa vida é uma obra mágica, que escapa ao reflexo da razão e mais rica se torna quanto mais dela se afasta, abraça o oculto e vai contra a ordem aparente das leis. (p.5).

Sob moral e ordem (só) aparentes, o interior do Brasil vai se modernizando. Porém – num trecho marcante da obra –, subsistem aleivosias e a devassidão sexual dos padres no interior do país, com seus escravos, e sob a vista grossa dos moradores, protegidos pela submissão absurda dos atingidos nesse cenário.

Um casal improvável O protagonista – por quem se apaixonará a primogênita das meninas, Emiliana, – é Felício, órfão, cafuzo escuro, trazido para um sítio da paróquia onde cria porcos e que, mesmo tão jovem, assumirá perante a cidade, a paternidade dos filhos que o padre vinha gerando com Dozinha, filha adolescente da zeladora silenciosa da paróquia. Um casamento aparente. Esse sórdido mundo que conhecemos desde Machado e Lima Barreto, se torna forte na obra. Emiliana, destinada pela tradição a se manter solteira “para cuidar da casa e dos pais”, começa a compreender na adolescência o desejo sexual a partir de uma pungente analogia ao conhecer o jovem:

A pele desse moço tem cor de jabuticaba. (p. 49).

Ou, na bela imagem do narrador:

(…) o fruto mordiscado de leve para a casca espessa se abrir e soltar entre os dentes e a língua o líquido grosso de um caroço rijo, envolto em macia polpa branca, de saber doce, mas não muito. (p. 49).

Será este um amor improvável. O negro Felício, criador de porcos, casado e pai, um dia não mais desviará o olhar da moça loira. Senti falta de mais foco neste amor erotizado, tão silencioso, tão intenso. Afinal estes amantes são o produto mais desventurado de suas prisões sociais. Ele, pai de filhos que nunca teve; ela, apenas a tia, estão brutalmente resignados a seus papéis numa sociedade hipócrita. Só uma vez por ano nascem as jabuticabas, e Emiliana que tanto trepara em árvores brasileiras para colher o fruto, deixará a adolescência para se esconder nesse amor.

Outros amores dividem a obra e a família. As gêmeas encontraram (como manda o figurino) em dois engenheiros italianos, aqui a trabalho, os noivos para os quais a tradição rigorosa sorria. Um dos casais iria a Manaus (pela construção da Madeira- Mamoré), outro a São Paulo (crescendo como metrópole). E as gêmeas, apaixonadas, e no papel de um casamento italiano, treinavam com a mãe a culinária das regiões italianas, que agregariam ao enxoval. Entretanto, num amor improvável, um dos noivos foge com a irmã mais nova, Fortunata, deixando a irmã enlutada e destruída. A informação do casamento civil deste casal (fuga moralizada, portanto) e a consequente punição desta moça nos pesam pela certeza de que as convenções morais ítalo-brasileiras vigem muito mais que a libertação de uma mulher em busca do próprio destino – que nem as sofridas cartas à família da caçula conseguiram minimizar. É uma boa narrativa, que teria fôlego para ser mais longa.

Quanto à composição gráfica da obra, em capa dura e em cores, elogiada por resenhistas e pelo autor, me parece gratuita. Para que este texto seja também um “objeto” estético? Ora, o texto enxuto, mas firme, não precisava de tais enfeites; há quase uma inversão: um capítulo para cada imagem, fotos ou ilustrações (várias sobejamente conhecidas nos acervos do país, Rugendas, Mark Ferrez, Otto Hees, alugadas em bancos de imagens).

Não, a iconografia não traz “harmonia e composição” nada agrega à história nem tece a imaginação de um leitor exigente. As imagens são óbvias e ingênuas: quando se fala da pele cor de jabuticaba, a imagem é a própria fruta; quando se fala em noivado, o leitor vê duas alianças; quando se fala em estradas de ferro, lá está um trem; quando se fala dos belos cabelos das irmãs, mostra-se uma fivela antiga. Isso é ruim. É assim que se destroem as metáforas e se emperra um bom texto no plano denotativo.

Houve quem dissesse que se aplicou aqui a “écfrase” – recurso retórico no qual uma arte se relaciona com outra para definir forma e essência. Não. Estes trechos da história do Brasil, insisto, sobrevivem sem adereços e para isso serve a literatura. O livro sem elas é curto demais? Que o autor o faça crescer, como parte do interesse pelo Brasil e por brasileiros. E como o livro não é autoficção, me atrevo dizer: Edney Silvestre, analise menos sua obra dentro da própria obra. Fale menos sobre ela.  Cabe a nós, leitores, fazer isto.

MÁRCIA LÍGIA GUIDIN, editora e crítica literária

Publicado no Rascunho www.rascunho.com.br

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