
Reprodução/SporTV
Ancelotti é Canarinho
- Heraldo Palmeira
Carlo Ancelotti já está no meio de nós! Depois de mais de um ano de ramerrame, habemus técnico na Selecinha. E a expectativa mundial não pode ser outra: voltar a ver a Seleção Brasileira no topo.
O técnico italiano de 65 anos – o quarto estrangeiro a dirigir a Seleção Brasileira – dispensa apresentações, a começar pelas condições do contrato que já circulam na imprensa: salário mensal de € 770 mil (R$ 4,8 milhões), bônus de € 5 milhões (R$ 31,3 milhões) pelo título da Copa 2026, mansão no Rio de Janeiro, equipe de segurança, carro blindado, seguro de vida, plano de saúde internacional e jatinho à disposição. Não poderia ser diferente, já que ele deixa para trás – segundo a imprensa espanhola – um salário anual de € 11 milhões (R$ 68,9 milhões) no Real Madrid.
Na parte não revelada do acordo, muito provavelmente estão condições de comando absoluto sobre tudo que compõe esse tipo de trabalho. Algo como chave do CT no bolso, palavra final em tudo e ponto final. Não haverá mágica no trabalho de Carleto por aqui, será transpiração para uma Seleção que há muito não dá resposta dentro de campo. O mais importante é que os jogadores de qualquer tamanho respeitam o cara e, ao que tudo indica, ficaremos livres de um assunto cansativo: Neymardependência. O italiano já será responsável pela próxima convocação e, para isso, Rodrigo Caetano (coordenador geral de seleções da CBF) e o ex-zagueiro Juan (coordenador técnico da CBF), deverão viajar à Europa semana que vem para fechar com ele a lista de convocados para os próximos jogos das Eliminatórias. Passo seguinte, o novo técnico virá ao Brasil para iniciar os treinos no CT do Corinthians.
Neste momento, Ancelotti está aguardando a resposta de Kaká – foi escolhido o melhor jogador do mundo quando era treinado por ele – ao convite para o cargo de auxiliar técnico. Cafu é citado como outra opção, talvez muito mais pelos próprios amigos. Para entender melhor o bafafá que terá pela frente, deverá conversar com Falcão, seu amigo e ex-companheiro naquele timaço da Roma.
Feito o anúncio oficial pela CBF, a imprensa esportiva pacheca não tardou a dar o vexame costumeiro. O resumo mais óbvio da notícia foi considerar uma jogada política do presidente da CBF Ednaldo Rodrigues, que precisava de um fato novo para fugir da embrulhada jurídica em que está metido. Sim, não deixa de ser verdade, mas é constrangedor tentar diminuir a isso o impacto da chegada de Carlo Ancelotti, cuja capacidade técnica ninguém ousa discutir.
É fato que Ednaldo Rodrigues privilegiou seu próprio interesse político nesse momento de mais uma crise que enfrenta com a Justiça. Assim, com o contrato já assinado, anunciou sozinho a novidade passando por cima do Real Madrid e do próprio treinador – que há dois meses tinha informado a Vini Jr. que estava tudo certo, seria ele o novo técnico do Brasil.
Alguns comentários revelaram que muita gente da mídia não consegue ficar de boca fechada quando não tem nada a dizer. As dúvidas colocadas a respeito da contratação também não escondem a leniência com a bagunça generalizada do futebol brasileiro e a insistência em não reconhecer a superioridade técnica do novo técnico sobre os “professores” nativos. Sim, esse ranço transmitido como “opinião” denuncia o complexo de inferioridade reinante. Sem contar a comparação da sobrancelha arqueada do italiano com o olho baixo do ex-jogador Amaral, na mesma emissora que suspendeu cinco jornalistas que criticaram a gestão da CBF. Sim, é mesmo inacreditável!
São reações puramente corporativistas, grosseiras, cafonas que apenas demonstram o baixíssimo nível da nossa crônica esportiva. Ou a CBF não é um labirinto que não presta contas a ninguém, com todos os últimos presidentes envolvidos numa linha de passe entre polícia e Justiça? Ou não estamos numa sinuca sobre a permanência do atual presidente da CBF no cargo? Ou não foi uma bagunça completa cada uma das cinco campanhas vitoriosas que nos fazem o único país pentacampeão até aqui? Ou não estamos vivendo uma das piores campanhas das Eliminatórias da nossa história, onde a classificação ainda é uma incógnita – com ou sem Ancelotti? Ou não estamos boquiabertos com o sequestro da camisa do escrete pelas facções políticas, sem que a CBF tenha dado um pio?
Fica no ar a impressão de que o medo dos críticos é que o italiano não dê a menor pelota para a ladainha chocha que infesta quase todas as resenhas esportivas. Um cenário piorado pela presença cada vez maior de ex-jogadores que foram apenas medianos em campo e agora estão fantasiados de “jornalistas” para defender um troco. Todos são da geração anterior à dos multimilionários do futebol, sem formação para a nova função, sem repertório, com posturas parciais, corporativistas e moralistas – é melhor nem lembrar dos “carrinhos por trás” que dão no idioma.
Um desses afirmou que Ancelotti não era sua primeira opção, pois preferia um técnico “que pode ser estrangeiro, mas que conheça o futebol brasileiro” – Jorge Jesus e Abel Ferreira devem estar morrendo de rir dessa bobagem, pois chegaram sem conhecer coisa nenhuma e o resto é história. Outro, mais estridente, acredita que o fato de não ter treinado seleções “é um problema”. Quantos técnicos que assumiram a Canarinho já tinham treinado seleções?
Esses caras fazem parte da patota cansativa de ex-boleiros que, por algum tipo de gratidão do passado, defendem a escolha de técnicos ultrapassados com quem trabalharam. São os mesmos que ainda insistem em Neymar como jogador de futebol e esperança brasileira para a Copa 2026, brigando com a realidade. Deveriam analisar que, desde 2014, são quase 1,5 mil dias afastado por lesões, algo como quatro anos em recuperação e sem jogar. Portanto, ninguém deve esperar que Ancelotti vá montar qualquer esquema de jogo ao redor de um hipotético Neymar. Ou joga ou vai assistir em algum camarote, sem perturbar o ambiente do time.
É impressionante essa soberba de tentar ignorar o histórico profissional de Ancelotti, um dos técnicos mais vitoriosos do mundo. Seu impressionante currículo coleciona 31 títulos em dez grandes clubes. Até aqui, é o único treinador a ganhar todas as principais ligas europeias – Itália, Inglaterra, França, Espanha e Alemanha. Fez parte da comissão técnica da seleção italiana de Arrigo Sacchi, na Copa 1994, e não assumiu a Squadra Azurra na Copa da Rússia porque não quis. Trabalhou com 43 jogadores brasileiros, nove deles presentes na campanha pentacampeã – a opinião de todos é a melhor possível sobre o treinador, reconhecido como de fácil trato.
Também está acostumado a comandar times gigantes como o Real Madrid – foi técnico do clube em duas ocasiões –, verdadeira seleção transnacional, eleito o maior clube do século 20 e já no mesmo caminho neste século 21. No mínimo, tem porte e moral para colocar cada macaco no seu galho no zoológico que virou a Seleção.
Parece que nossos “analistas” esqueceram que a Seleção já esteve sob comandos desastrosos de Sebastião Lazaroni, Parreira, Zagallo, Candinho, Evaristo, Falcão, Dunga, Luxemburgo, Tite, Ramon Menezes, Fernando Diniz, Dorival Júnior… Mesmo que não ganhe nada, Carlo Ancelotti permanecerá a uma distância medida em anos-luz de todos eles e sua passagem pela Canarinho deixará no mínimo um saldo positivo.
Sim, ele é mesmo um problema para alguns jogadores, porque, doravante, estrelismos não terão vez. Também será difícil ver patotas de bad boys e seus súditos no grupo de convocados. Até porque será a maior estrela da companhia, sua estatura internacional deverá proteger a própria Seleção das confusões da CBF e do assédio de empresários.
Antes de criticar a contratação de um técnico do nível indiscutível de Carlo Ancelotti, que tem tudo para cair como uma luva na reconstrução da Seleção Brasileira, essa mídia roufenha poderia exigir providências a respeito de coisas realmente críticas. Os altos preços dos ingressos, que afastaram dos estádios o torcedor de baixa renda, o mais apaixonado. A moralização da CBF. A reconstrução do jornalismo esportivo, hoje infestado de assessores e blogueiros chapa-branca que impedem o trabalho dos verdadeiros jornalistas, com prejuízo da cobertura e do noticiário produzido.
Com nosso calendário maluco e essa cartolagem no comando, é impossível acontecer algo revolucionário nos gramados nacionais para justificar a presença constante no Brasil que já estão cobrando de Ancelotti. Se algo sobrenatural ocorrer, há um jatinho à disposição para ele vir voando. Sem contar que tudo estará registrado com inúmeras câmeras e com direito a replay.
O novo técnico faz bem ao decidir morar em Londres, onde já tem casa e sempre se refugia nas folgas, e vir aqui quando for inevitável. Afinal – muita gente finge esquecer –, nossos principais jogadores vivem e jogam na Europa, e ele considera que a capital inglesa é o local ideal para acompanhar a turma que atua no Velho Continente. Engraçado, ninguém lembra que é o mesmíssimo modelo que vem sendo adotado por Lionel Scaloni, técnico da Argentina e atual campeão do mundo. Que vive na Espanha e nunca tinha treinado seleções.
É incrível ver tanta gente considerando bobo o treinador mais vitorioso do mundo, como se ele estivesse dando um tiro no escuro. Ora, o tempo dele no Real Madrid já estava terminando e, agora, só lhe falta uma Copa do Mundo para coroar sua vitoriosíssima carreira. O contrato curto – vai apenas até o fim da Copa 2026 – deixa isso bem claro, é um objetivo profissional que persegue. Nada mais lógico do que escolher a camisa mais importante da história do futebol, que nem mesmo a CBF foi capaz de destruir.
A primeira consequência da contratação de Ancelotti é visível: muita gente voltou a acreditar no hexa. Talvez seja essa sua primeira vitória com a camisa Canarinho. O resto é torcida.