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Apenas um rapaz
- Heraldo Palmeira
Amanheci com uma saudade danada de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, cearense de Sobral que aprendemos a tratar simplesmente como Belchior – alguns pedantes usam até hoje o circunflexo para inventar um certo Belchiôr, talvez vã tentativa de ficar à altura da erudição do artista. Dei de cara com uma certeza: minha saudade não era apenas da pessoa e de sua obra, mas de um tempo que ajudaram a traduzir.
Fui aos alfarrábios constatar que ele se foi em 2017. Tinha apenas 70 anos, parece que foi ontem. Pensei nas tantas vezes que trabalhei em produções locais de shows, alguns dele. Viver a cena cultural de alguma maneira era indispensável, fazia parte do programa de formação da vida naqueles tempos.
Um homem de extrema delicadeza no trato com todo mundo, inclusive nas entrevistas – esteve várias vezes na rádio e jornal dos Diários Associados onde colaborei na juventude. A voz sempre suave, semblante que embutia um sorriso afável e encabulado, olhar inquieto e acolhedor. Presença sempre ótima para ouvintes e leitores, qualquer assunto tratado com inteligência refinadíssima.
Lembrei de tocar vários discos de Belchior numa discoteca em pleno ardor da disco music – o melhor chacundum que já houve no mundo –, logo ali em 1979. Maior recompensa, as pessoas cantando baixinho e dançando agarradinhas na seção “penumbra” daquelas noitadas. Justiça seja feita, a música brasileira fazia parte do mix sem qualquer dificuldade, motivo de orgulho para todos nós que apostamos naquela ousadia.
Depois dos primeiros rituais do dia – academia, banho reconfortante e café da manhã – liguei o som e fui de vinil. Momentos nobres exigem isso, com a devida comitiva formada por toca-discos Technics, amplificador Yamaha e caixas B&W. E toda a grandeza de Belchior, que borrifava seu amor aos livros pelos versos que compunha, se espalhou a partir dos álbuns Belchior (que também é chamado de Mote e Glosa porque o disco não tem título e essa é a primeira faixa) e Alucinação, ouvidos nesta sequência cronológica (links abaixo).
Nada como o enorme sofá da preguiça, vista para o mar, na hora de viver algo assim. Não pensar em nada, apenas ouvir aquelas músicas e sofrer. Sofrer pelo que vemos sendo chamado de música por aí. Sofrer pela indigência intelectual de uma sociedade que não se dá conta das próprias virtudes – um artista como Belchior, por exemplo. Sofrer porque ele não está mais por aqui para nos fustigar em pessoa sua filosofia musicada de altíssimo nível. Sofrer por saber que ele desistiu cedo de insistir, talvez ferido pelo que viu no ambiente da arte transformada em consumo que foi obrigado a frequentar. Sofrer por saber que ele se retirou deliberadamente longe de familiares, amigos e do mundo da música – pelo menos com seu nome reafirmado nas novas gerações, mesmo sem gravar novidades e nem se apresentar ao vivo há muito tempo. Saiu de fininho como um herói quixotesco, pleno da lucidez do seu disparate.
No mundo das artes não foram poucos os que fizeram intervalos sabáticos ou simplesmente saíram de circulação em exílios voluntários, alguns para nunca mais. Belchior foi dos poucos que fez em vida o que muitos fantasiaram na poesia. Roberto Carlos mandou tudo pro inferno e continua no Céu. Raul Seixas pediu para parar o mundo pois queria descer e ficou rodando nele sem qualquer direção até o fim. Gil quis fugir pr’outro lugar e foi de São Conrado para Copacabana, sempre com vista atlântica. Caetano quis dar o fora e nunca deixou de fazer tudo para ficar dentro.
Fiquei pensando que eu sou apenas mais um rapaz latino-americano sem parentes importantes e vindo do interior. Um rapaz sem dinheiro no banco que teve a sorte de viver a juventude num tempo em que a música que interessava era a música boa. Cabelo imenso, ao vento. Que teve a sorte de vestir macacão Lee sem camisa, tamancos Dr. Scholl’s, bolsa a tiracolo. Que teve a sorte de vestir uma velha roupa colorida, abestalhado tentando captar os mesmos sinais transmitidos em frequências tão poderosas e distintas por Belchior e Elis. Portanto, por favor, não me venha perguntar por onde andei. Pelo menos tentei não viver como nossos pais, apenas levei para o mundo que trilhei os ensinamentos fundamentais que eles me deram com amor e sem gritarias. Quer saber? “Eu não estou interessado em nenhuma teoria. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Se não for satisfatório, mate-se logo que, à noite, todos têm um compromisso e não podem faltar por causa de você.
Sabe a tal discoteca onde tocávamos tudo? As noitadas eram abertas com discos dos maestros Paul Mauriat, Ray Conniff e suas orquestras. Sim, música instrumental tocando baixinho enquanto as pessoas chegavam e se ambientavam. Inocência até certo ponto, logo em seguida o pau cantava com Donna Summer, Gloria Gaynor, Chic, Bee Gees, Earth, Wind & Fire, Sylvester, Boney M, Village People, Tina Charles… E o mundo rodava com álcool, tabaco e muitas maçãs de néon amanhecendo nas janelas da lendária Apple Discothèque, numa Natal provinciana onde Ponta Negra e Morro do Careca ainda podiam viver seu namoro em paz.
Eu já não tenho 25 anos de sonho e de sangue, e de América do Sul. Depois de tudo, aprendi que um blues vai tão bem quanto um tango argentino. Um desejo? “Eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês”. O mesmo A palo seco, expressão espanhola que significa “franco, direto, sem rodeios” que também deu nome a poema de João Cabral de Melo Neto, certamente da lista de leitura sofisticada do trovador Belchior. Ele mesmo franco, direto, sem rodeios liberou beijar a menina na sessão de cinema “e levar a saudade na camisa toda suja de batom”. Alucinação é pouco!
Os estalos característicos da agulha no vinil que chegou ao fim me trouxeram de volta. O ritual de passar a flanela no disco antes e depois da audição nunca se perdeu. Billie Holyday assumiu a cena, ela que tem a capacidade de transportar qualquer parte do dia para o fim de tarde e, quando a gente cuida, está madrugada adentro, uísque on the rocks. Coisa de Lady Day. Mais blues, impossível!
Ah… ia esquecendo: sabe aquele antigo compositor baiano que dizia que tudo é divino, tudo é maravilhoso? Pois bem, faça sua parte. Ainda dá tempo. Tudo é permitido, até beijar no escuro do cinema, quando ninguém nos vê. Não tá na hora de sair de novo à rua, em grupo reunido, o dedo em “V”, cabelo ao vento, loucura, chiclete e som? Tudo bem, o ritmo será mais lento, mas será. É bom lembrar que não nos é permitido secar as “lágrimas nos olhos de ler o Pessoa”. É infinito renovar nossa fotografia 3×4 de vez em quando. Ou não precisamos todos rejuvenescer? “Senão chega a morte, ou coisa parecida, e nos arrasta moço sem ter visto a vida”.
É melhor delirar com as coisas reais. Blue jeans, motocicleta… não precisa avançar muito mais. Não, não estou interessado nessas coisas do Oriente, romances astrais nem experiências sensoriais. Ser feliz é possível? Basta não perder de vista que “a felicidade é uma arma quente”.
– Dedicado a Roberto Bagadão, Zé Campelo, Múcio Almeida, Hermann Soares, Aécio Mamão e Leandro Mendes.
Trechos incidentais Apenas um Rapaz Latino-americano (Belchior) | A Palo Seco (Belchior) | Como Nossos Pais (Belchior) | Alucinação (Belchior) | Sujeito de Sorte (Belchior) | Todo Sujo de Batom (Belchior) | Velha Roupa Colorida (Belchior) | Fotografia 3×4 (Belchior) | Na Hora do Almoço (Belchior) | Comentário a Respeito de John (José Luis Penna-Belchior)
Ouça aqui
Belchior (Mote e Glosa) https://open.spotify.com/intl-pt/album/0bXkMqbt9bxyjCxBQvDgvC?si=EnXZzdUORdeVjU2Z3EEGUg
Alucinação https://open.spotify.com/intl-pt/album/2AwtTIdUFaUl69alioeFut?si=q1bSwAYiQsqa0rP4xhv2qw