Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

As zebras passeiam na Copa

Wagner Anne/Pixabay

As zebras passeiam na Copa

  • Sylvio Maestrelli

Para os saudosistas como eu, o futebol está em baixa. Faltam craques, sobra preparo físico. Excesso de jogos, pela ganância de patrocinadores, também contribuem para tal situação. E nas Copas do Mundo mais recentes, vemos jogadores que atuam o ano inteiro em uma determinada disposição tática, em seus clubes, serem obrigados a exercer outro papel – bem diferente – nas suas desentrosadas seleções, que esporadicamente se reúnem para treinamentos. Isso afeta ainda mais a qualidade das partidas. Completam o conjunto de fatores o ufanismo de narradores e comentaristas em busca de novos ídolos (mitificando e superestimando atletas medianos), a prepotência dos “técnicos professores”, o domínio dos empresários e agentes nas categorias de base e as arbitragens, que não conseguem melhorar nem com o suporte da tecnologia.

Essa linha de opinião não faz referência apenas ao futebol brasileiro, que desde 2006 não produz craques realmente decisivos. Todas as potências futebolísticas padecem do mesmo problema. Em algumas ainda surgiram pontos fora da curva, como Messi, Cristiano Ronaldo, Schweinsteiger, Mbappé, De Bruyne e outros, mas são casos isolados. Temos, espelhados pelo mundo, vários ótimos jogadores, porém raros são os que desequilibram efetivamente.

Nestes tempos em que os conjuntos predominam sobre as individualidades, torna-se natural que os poderosos clubes europeus sejam mais qualificados que as seleções nacionais. Sim, porque nas principais ligas da Europa atuam durante toda a temporada os melhores jogadores de todos os continentes. Vencer a Champions League rende mais financeiramente que conquistar uma Copa do Mundo, que, por enquanto, ainda mantém seu prestígio e charme. Mas até quando?

É bem verdade que – independentemente das motivações, escusas ou não – os programas que a FIFA vem desenvolvendo em todo o mundo, desde a gestão de João Havelange, com intercâmbios, torneios internacionais envolvendo infantis, juvenis e juniores, a realização de Mundiais Sub-20 e Sub-17 etc., geraram progresso futebolístico em vários países. Sobretudo naqueles de menor tradição – africanos e asiáticos. Os resultados nas competições entre adultos vêm mostrando a viabilidade desses investimentos.

Antigamente, quando víamos um Estados Unidos 1×0 Inglaterra (1950), Coreia do Norte 1×0 Itália (1966), Argélia 2x1Alemanha (1982 ) ou Camarões 1×0 Argentina (1990), nos vinha à cabeça a figura da zebra, o simpático animal consagrado em nossa Loteria Esportiva, que representava a derrota do favorito e o consequente êxito do azarão. Hoje, não. Só no Catar, tivemos sauditas derrotando argentinos, tunisianos vencendo franceses, japoneses batendo alemães, sul-coreanos derrotando portugueses, camaroneses derrubando brasileiros, marroquinos vencendo belgas, australianos eliminando dinamarqueses… E para as oitavas de final passaram duas seleções da Ásia e duas da África, o mesmo número que da tradicional América do Sul. É tudo zebra?

Certamente, não. O mapa geopolítico do mundo da bola está mudando numa velocidade espantosa. Ainda que exista uma padronização nefasta no modelo de se jogar bola, hoje ditada pelos treinadores europeus e seus auxiliares. A ponto de, no Brasil pentacampeão, técnicos portugueses “revolucionarem os padrões táticos” e conquistarem os principais títulos continentais com facilidade. A ponto de, em quase todas as seleções que disputam a Copa do Catar, de 60% a 90% dos jogadores atuarem na Europa.

A América do Sul, que sempre se caracterizou pela qualidade técnica de seus futebolistas, hoje exporta seu “pé de obra” muito cedo para o Velho Continente. Diversos jogadores saem diretamente dos juniores para times europeus, sequer disputando os campeonatos nacionais locais. Antes da maioridade, seus empresários fecham pré-contratos com os gigantes europeus. Os garotos são convocados para suas seleções principais, mesmo que praticamente desconhecidos pelos torcedores de seus próprios países. Alguns ainda “pagam pedágio” usando o Brasil como trampolim, embora os mais destacados emigrem direto.

O problema maior é que o êxodo prematuro não implica somente a redução da qualidade da Libertadores ou do Brasileirão, por exemplo, mas configura um ponto nevrálgico para entendermos o declínio técnico de Argentina, Brasil e mais acentuadamente dos demais países da vizinhança.

Ao se afastar de suas origens futebolísticas, a garotada se “europeíza”, ou seja, abandona a criatividade, a ginga, a malandragem, os dribles (características típicas que temos) para se moldar aos padrões rígidos do pragmático futebol de resultados. A improvisação e o toco y mi voy (toco e vou), o samba, o tango e a cúmbia dão lugar ao concerto clássico, tão distante de nossas raízes. Troca-se o fanatismo dos hinchas (torcedores) e os cânticos bem-humorados de nossos estádios pelos aplausos bem-comportados em “teatros” impecáveis.

Africanos e asiáticos, talvez por questões culturais, se adaptam ao futebol europeu sem perder, de maneira geral, sua essência futebolística. Quando vemos representantes da chamada África Negra jogando (Gana, Senegal, Nigéria, Camarões, Costa do Marfim e outros), identificamos uma certa irresponsabilidade, o drible imprevisível e muitas vezes fora de hora, a força física desmedida, o atacar quando um empate basta e demonstrações da velha paixão. Quando assistimos aos asiáticos (Japão, Coréia do Sul), notamos a grande velocidade no trocar passes, a “multiplicação” dos jogadores em campo, a disciplina, a essência do futebol solidário e coletivo, a tática quase genética. Sem esquecer que atualmente também temos um quase “modelo árabe”, que privilegia ligações diretas goleiro-ataque, contra-ataques e força física, sem centroavantes de referência – adotado por seleções como Marrocos, Argélia, Tunísia e Egito.

E aqui vale a pena abrir um capítulo para as seleções da Europa, continente onde os clubes são cada vez mais fortes e as seleções cada vez mais fracas. Além da importação excessiva de jogadores, o que inibe a utilização, nos grandes times, de revelações locais, algo que os nacionalistas têm questionado, o exagerado eurocentrismo da UEFA (que criou até uma inexpressiva Liga das Nações para que os europeus não se desgastassem enfrentando seleções de outros continentes) também tem contribuído para o declínio do futebol. É comum hoje, por exemplo, na Liga Inglesa, a mais forte tecnicamente do mundo, não haver nenhum jogador inglês iniciando a partida em um clássico. E os jornalistas italianos, criticando a fracassada Azzurra das últimas Copas, apontam como principal fator a “internacionalização” do futebol do Calcio, nem sempre com a contratação de estrangeiros realmente qualificados.

Por tudo isso, é melhor irmos nos acostumando. Talvez com o inchaço na Copa de 2026 [desde países sedes (3), até participantes (inacreditáveis 48)] ainda possamos visualizar alguma simpática zebrinha listrada pastando nos estádios. Mas, pelo andar da carruagem, será cada vez mais difícil. Até lá, mesmo as improváveis Ilhas Salomão, a Etiópia ou o Turcomenistão (entre outros) poderão ter seus principais jogadores atuando em pequenos times europeus.

*Sylvio Maestrelli, educador e apaixonado por futebol

Acompanhe aqui a nossa série sobre a participação do Brasil em todas as Copas

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