Por Heraldo Palmeira
Los Angeles
Nova York
São Paulo
Lisboa
Londres
Fase da Lua
.
.
2 de abril de 2025

HERALDO PALMEIRA Asa partida

Garoch/Pixabay

Asa partida

  • Heraldo Palmeira

O menino passou os primeiros anos da vida morando em apartamento. Havia mudado para uma casa ampla num condomínio e estava deslumbrado com aquela nova realidade. O mais apaixonante era o contato com a natureza, o amplo quintal interno, a quantidade impressionante de plantas, passarinhos, insetos… Ele passou a compreender na prática o que vinha estudando na escola, que havia um sistema vivo com suas regras.

Não gostava de ver corujas, carcarás e gaviões que apareciam de vez em quando no telhado e no muro. Aprendera a entender que eram predadores vorazes e pensava nas vítimas indefesas nos ninhos. Mas, logo lembrava que eles também atacavam visitantes indesejados como serpentes e roedores.

A casa era uma espécie de laboratório das experiências do mundo silvestre com seus encantos e surpresas. O menino ainda não entendia o significado de “santuário” da nova vivenda, mas estava cada vez mais envolvido em cuidar do imenso jardim, regar as plantas, alimentar a passarinhada. Canários, galos-de-campina, pardais, açuns-pretos, rolinhas-brancas, rolinhas-caldo-de-feijão, bicos-de-lacre, azulões, anus-brancos, sabiás, bem-te-vis, lavadeiras, quero-queros vinham todos os dias, enchiam as árvores ao redor e desciam para o gramado naquela arrelia tradicional.

A chegada à nova casa coincidiu com o período do ano em que as borboletas e mariposas ajudavam a enfeitar tudo com sua delicadeza e cores exuberantes. Não raro, perdiam a orientação pelas luzes acesas e eram atraídas para dentro. Algumas terminavam retidas noite adentro, depois que portas e janelas eram fechadas e lâmpadas apagadas quando todos se recolhiam. Na manhã seguinte estavam exaustas de tanto tentar ultrapassar vidros de portas e janelas para retomar a vida lá fora. E lá ia o menino tangê-las para fora, quase sempre com sucesso.

Até que, um dia, aquela belíssima borboleta azul e preta não acertava a saída e voltava para pousar no vidro. Angustiado, ele tentou ajudar como já fizera em outras ocasiões: pegou a borboleta pelas asas inferiores para jogá-la ao ar. A bichinha reagiu apavorada e as duas asas inferiores ficaram nas mãos do menino, deixando a tinta preta e azul nos dedos. Ela ficou tentando voar sem sustentação e caía sempre.

Desolado, o menino se sentiu impotente e suspeitando que tinha condenado aquela criaturinha à morte. Restou nele o coração partido e o choro arrependido pelo que causou à borboleta, mesmo guiado pela melhor das intenções, movido pela vontade de ajudar. Sofreu sozinho. Não contou para ninguém tamanha desventura porque temia que os adultos da casa não compreendessem seu sofrimento, ocupados que estavam com as urgências inúteis e desafortunadas do cotidiano, onde dificilmente caberia o infortúnio de um inseto.

Prometeu a si mesmo doravante ser cuidadoso ao tentar intervir na natureza. Teria sido melhor não se intrometer, apenas abrir portas e janelas e deixar por conta da borboleta o passo seguinte. Se ela morresse tentando reencontrar a liberdade teria sido seu próprio destino.

O menino, mesmo sem querer, provocou uma pequena variação, algo aparentemente insignificante como a morte não programada de uma borboleta, mas que poderia gerar grandes mudanças no decorrer do tempo. Por sorte, ainda não fazia ideia do conceito do efeito borboleta da teoria do caos. Senão, acrescentaria tintas fortes ao próprio sofrimento.

Daquele dia em diante, o menino se limitou a assistir em seu enorme quintal interno a aplicação da lei do mais forte na disputa pela comida, a luta dos predadores e presas, as fases reprodutivas, as mutações de algumas espécies – mariposas, borboletas e formigas de asa –, o ambiente estressado dos passarinhos sempre em alerta contra predadores…

De vez em quando lembrava da linda borboleta azul e preta com carinho e arrependimento. Cada vez mais se convencia de que ela o tinha perdoado, talvez um exercício para abrandar a culpa.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

©