Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Banca de livros

Divulgação/Banca Tatuí

Banca de livros

  • Heraldo Palmeira

Resumo da saudade Sabe aquele lugar quase mágico que a gente ia regularmente para comprar títulos interessantes, nacionais e importados – jornais, revistas, livros, publicações independentes –, produtos de tabacaria, bombons, chicletes, pastilhas e outras guloseimas? Onde também se batia ponto para encontrar amigos, trocar ideias, jogar conversa fora e virar amigo do jornaleiro? Endereço de prazeres insondáveis, acolhia nossas encomendas para formar nossas coleções, uma espécie de remédio de uso contínuo para o intelecto. Sorte de quem sabe decifrar esse conjunto de maravilhas como banca de jornal – cigarreira em alguns pontos do país.

Com o tempo, aquelas caixas metálicas foram ganhando reforço de geladeiras de bebidas e até freezers de sorvetes, além de muitos outros produtos milimetricamente arrumados no espaço exíguo. Suprassumo eram as bancas que vendiam jornais e revistas estrangeiros, soprando um ar descolado apesar do preço de luxo!

O mundo digital trouxe tempos sombrios para o mundo impresso e a leitura passou a ser demonizada por exigir tempo, algo sem lugar no conceito de rapidez dessa era tecnológica – inventaram até um padrão de 140 caracteres imediatamente consagrado.

Uma espécie de força invisível terminou ferindo de morte o hábito da leitura, liquidando boa parte dos impressos, livrarias, lojas de discos e filmes, locadoras e as próprias bancas de jornal, gerando uma indigência cultural de altíssimo custo.

Hoje, poucas bancas resistem, quase exclusivamente nas capitais, São Paulo com mais insistência. E é na Pauliceia Desvairada que temos renascimentos diversos para a velha e boa caixa de metal, item fundamental na própria formação cultural da sociedade moderna. Ou não é impagável ato de formação cultural a busca de informação daquele magote de passantes amontoado ao redor dos jornais do dia, dependurados em proteções plásticas do lado de fora? Curioso, eram tempos em que narrativas não viravam verdade com tanta facilidade.

Banca Tatuí Na verdade, estamos falando de uma livraria em forma de banca de jornal. Fundada em outubro de 2014 pelos jornalistas e editores João Varella e Cecilia Arbolave, está instalada na rua Barão de Tatuí, no encontro dos bairros Vila Buarque e Santa Cecília, na região central de São Paulo.

O teto da caixa metálica já serviu de palco para shows intimistas e desde 2016 abriga um jardim. A porta/fachada ostenta um mural pintado ao vivo em 25 de janeiro de 2024 – data do aniversário de 470 anos de Sampa – pelo quadrinista Felipe Parucci.

A aventura começou por iniciativa da editora Lote 42, especializada em publicações de artes gráficas do mercado alternativo, também tocada por João e Cecilia. Na verdade, uma empresa vista como alternativa que sempre se valeu de enorme criatividade e administração enxuta – mesmo durante a crise trazida pela pandemia de Covid-19, não demitiu funcionários – para se manter um passo adiante da improvisação e do amadorismo comuns ao ambiente da produção independente.

A mesma criatividade que caracteriza a editora deve ter orientado a ideia de trazer à luz a Banca Tatuí. Trata-se do primeiro estabelecimento do gênero dedicado inteiramente a títulos independentes brasileiros, que transformou uma esquina antes conhecida como ponto de venda de drogas num local que agora comercializa trabalhos de 200 pequenas editoras, artistas e coletivos independentes inclusive de países como Argentina, Chile, Colômbia, Inglaterra, Suíça…

Instalada a 600 metros da estação Santa Cecília do metrô, a banca estabeleceu ali um clima de feira do setor. O lugar certo para quem procura ilustrações, fanzines, revistas, livros, jornais e ecobags com projetos gráficos ousados produzidos fora do circuito tradicional. Também oferece eventos culturais, festas e pocket shows (pequenos shows).

Hoje, a Banca Tatuí é mais um ponto de destaque do vibrante circuito artístico-cultural-empresarial da região, pois está instalada num corredor repleto de negócios descolados que se completa com bares, restaurantes e cafés, quase todos montados e administrados por moradores.

A Banca Tatuí está definitivamente registrada nos momentos pioneiros do movimento de revitalização de bancas de jornais com os mais diversos e simpáticos fins comerciais (veja links abaixo). Seu surgimento inspirou outras iniciativas em algumas cidades brasileiras, e sua importância já foi devidamente reconhecida (em 2018) pela Câmara Municipal de São Paulo com o Prêmio Milton Santos, que destaca publicamente projetos ou iniciativas que promovam formas locais de organização e desenvolvimento social no município. A Tatuí venceu na categoria que estimula a participação e interação da população da região onde está instalada.

Ampliando a feliz iniciativa de espalhar cultura e arte para a sociedade, naquele mesmo 2018 foi inaugurada a Sala Tatuí, na mesma rua, onde está uma livraria complementar à banca e um espaço para cursos e oficinas voltados a criatividade, onde é possível tratar a confecção de um livro falando de edição e design. Também abriga clube de leitura, cinema, debates e lançamentos literários.

Mercado O mercado literário brasileiro está emergindo de um tempo triste em que perdeu marcas emblemáticas como Saraiva, Fnac, Cultura, Nobel, Da Vinci e Galileu, feridas maiores em uma crise que liquidou centenas de pequenas livrarias em muitas cidades.

É curioso, mas nem sempre esses empreendimentos enfrentaram falta de clientes. Muitos sucumbiram por problemas de gestão, não atualizaram os métodos de gerenciamento ou não contatam com herdeiros interessados ou capacitados para suceder os fundadores.

Claro que é preciso festejar a resistência heroica da Martins Fontes, Travessa, Leitura, Argumento e Livraria da Vila, bem como o surgimento de um mercado de bairro com livrarias cada vez mais especializadas. Como se não bastasse, há uma saudável tendência de transformar esses lugares em espaços culturais múltiplos, juntando outras artes para engrossar o caldo. Algo que vale tanto para empresas que associam numa mesma loja livros, eventos, comidas e bebidas quanto para um formato banca de jornal ampliada como a Tatuí.

Mesmo esse ambiente animador carece de esforço contínuo, pois seguem na moda fatores preocupantes instalados no comportamento da sociedade, reveladores da gravidade do seu declínio intelectual. Por exemplo, na hora de conciliar livros em seus projetos a visão de muitos arquitetos e decoradores embaça nas próprias limitações culturais ou na paleta cores das fábricas de tintas que usam como “bíblia”. Dentro dessa lógica restrita inventam soluções que beiram o inacreditável, como arrancar capas, lombadas e contracapas, deixando apenas os miolos em exposição nos ambientes arquitetados/decorados. Ou seja, surge uma espécie de versão nude (nua) do que foram os livros antes da expressão de ignorância dessa gente sem noção, que obviamente inclui os clientes que aprovam e pagam a conta. “Vandalizar livros é a última moda decorativa. […] A sacada é tão brilhante quanto simples: por dentro, em seu conjunto de páginas, aquilo que o jargão editorial chama de miolo, livros são quase monocromáticos – vão do branco ao bege, tons que felizmente se encaixam bem em propostas minimalistas, ‘neutras’, que são tendência nos mais elegantes interiores contemporâneos. Assim, basta arrancar com cuidado a capa dos bichinhos – o que inclui, atenção, lombada e contracapa – e deixá-los pelados, reduzidos ao seu essencial nude. O tal miolo é, paradoxalmente, o paraíso dos desmiolados”, registra o jornalista Sérgio Rodrigues.

Os desmiolados também lançam mão de “bibliotecas” que não passam de painéis de madeira ocos com lombadas de livros falsos. Mais letais são os clientes que preferem livro nenhum em suas salas de abobrinhas. Na verdade, todas essas marmotas revelam um retrato com todas as cores de uma sociedade que abriu mão de formação e conhecimento em favor de narrativas ideológicas e fake news.

Nunca foi tão valioso ter crianças e jovens envolvidos com cultura e arte. Vê-los em grande quantidade em livrarias e feiras de livros é animador. Melhor ainda, testemunhar a explosão do mercado infanto-juvenil, garantia de formação de novos leitores e de futuro para os livros.

Até nos muitos momentos em que a sabotagem da leitura ganhou contornos institucionais com a censura, inclusive pela queima de livros, as bibliotecas e livrarias preservaram a importância da literatura na construção da sociedade. Agora, quando a tecnologia parecia assumir um papel devastador para os produtos impressos, o comércio virtual surgiu como grande aliado para manter o ambiente literário vivo e crescente, garantindo o interesse e a circulação de livros num momento de reorganização do mercado tradicional. Em pouco tempo o segmento ultrapassou a crise e deu início a um robusto movimento de abertura de lojas de bairro customizadas para públicos locais. Menores e aconchegantes, começam a atrair a vizinhança e virar ponto de encontro.

O resultado de todos esses movimentos é a criação de um ambiente de empatia para os livros numa sociedade flagelada pela indigência intelectual espalhada pelas redes sociais. É inegável que temos instalada uma nova perspectiva comercial que vem gerando números surpreendentes nas vendas físicas e eletrônicas para autores e criadores de todos os mercados. É o que importa de fato.

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