Por Heraldo Palmeira
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18 de abril de 2025

HAYTON ROCHA Brigitte não morreu

Tatlin/Pixabay

Brigitte não morreu

  • Hayton Rocha

Uma história bem contada quase vira verdade. E ainda pode deixar putas lições.

Quem me contou esta história foi um velho parceiro de trabalho, na juventude frequentador assíduo dos becos do bairro portuário. Nesta primeira semana do ano, ele parecia flutuar no tempo, relembrando os casarões da região, onde a vida pulsava muito antes das luzes frias dos postes modernos. Ali, as boates pareciam cenários de romances noir, com o eterno vaivém da profissão mais antiga do mundo – numa época em que influencers ainda nem existiam. E a mais célebre delas era a lendária boate Night and Day.

Ele riu ao recordar o descompasso do coração sempre que alguém gritava “Tintureira à vista!”. Não era peixe graúdo das mansões beira-mar da elite, mas a viatura preta que patrulhava a zona portuária. Moleques com hormônios em ebulição, pegos bebendo, comendo (literalmente!) ou apenas absorvendo a vertigem do recinto, tinham destino certo: uma noite na cadeia, com ressaca e cigarros compartilhados com os detentos.

No meio daquela efervescência, reinava Brigitte – ou, como foi batizada ao nascer, Abigail Maria dos Prazeres. Diva dos casarões, decidiu rebatizar-se em homenagem à estrela francesa que brilhava nos sonhos de muitos jovens mundo afora. Brigitte era generosa e vaidosa, dispensando o pagamento de alguns sortudos bem-apessoados, deixando atrás de si um rastro de suspiros e lembranças inesquecíveis.

Semana passada, a cidade deu seu último adeus a Brigitte. Aos 90 anos, ela foi internada após um infarto e não resistiu. No cortejo, organizado por meu amigo e alguns contemporâneos, uma Kombi com alto-falantes tocava Pagu, nas vozes de Rita Lee e Zélia Duncan. Um verso em especial ecoava como prece à diva: “Minha força não é bruta, não sou freira nem sou puta…”.

Curioso com tamanha reverência, perguntei ao amigo o motivo da homenagem. Ele sorriu, abriu um envelope e revelou o maior legado de Brigitte: uma carta-manifesto escrita há mais de três décadas, talvez endereçada às antigas colegas da velha guarda das boates – muitas delas, agora, matriarcas respeitáveis.

Enquanto organizava o cortejo, ele encontrou a carta, guardada com zelo durante anos. Era como se Brigitte estivesse presente, conduzindo a despedida com sua irreverência e sabedoria. Ele me mostrou o texto, dizendo: “É isso que ela queria que fosse lembrado. Não os casarões ou as festas, mas o que ela aprendeu e quis dividir com a gente”.

A introdução da carta era uma aula de estilo:

Peço desculpas às destinatárias destas linhas – putas, como eu, aposentadas ou quase –, que ainda acham que a velhice é só um estado de espírito. Digo logo: não é. Gostem ou não, velhice é um estado de acelerada decomposição do corpo e da mente…

O restante do texto era um manual direto, irônico e prático, com dicas úteis a todas as pessoas que desejam envelhecer com dignidade:

  1. Aceite que dói menos. Nada de metáforas como “melhor idade”. Velhice não é crime, só é constrangedora em alguns momentos.
  2. Ao telefone, nunca diga: “Ah, lembrou que tem mãe, hein?!”. A linha pode ficar muda para sempre.
  3. Boa educação é essencial. Nada de sons, cheiros e gestos desagradáveis.
  4. Chiclete? Só em casa e de boca fechada. Nada de parecer uma vaca ruminando no caminho do brejo.
  5. Cirurgia plástica? Se quiser virar uma caricatura, vá em frente.
  6. Coma, beba e fale menos. Velhas sóbrias e magras são menos chatas e mais saudáveis.
  7. Cuidado com nostalgia e otimismo excessivos. Velhas tristes são insuportáveis; alegres demais, tolas.
  8. Evite maquiagem pesada. Já parecemos velhas; ninguém precisa exagerar na caricatura.
  9. Gaste com critério, mas gaste. Herança, quase sempre, premia ingratidão.
  10. Higiene impecável. Nem o diabo aguenta velha fedorenta e peluda.
  11. Jamais pergunte: “Estou gorda?” ou “Você me ama?”. Você já sabe as respostas.
  12. Leia. Livros são aliados quando a conversa fica sem graça.
  13. Minissaias? Nem pensar. Isso vale também para blusas tomara que caia ou curtinhas, com o umbigo de fora.
  14. Não custa lembrar: ter cara de rica envelhece.
  15. Netos? Ame muito, a distância. Criar, só na ausência dos pais.
  16. Poupe os outros de histórias antigas. Elas só interessam a você.
  17. Sobrancelhas. Se fizer qualquer coisa de errado nelas, acaba com seu rosto.
  18. Trabalhe, se puder. Colegas de trabalho te toleram melhor que sua família.
  19. Viajar é bom; descrever viagens, não. Diga apenas destino e duração. Se alguém quiser saber mais, responda “sim”, “não” ou, no máximo, “depende”.
  20. Viva só a sua vida. Aceite que dói menos. Filhos e netos têm suas próprias jornadas.

O texto encerrava com um toque de mestre:

Sei que minha capacidade de explicar termina onde começa a de vocês entenderem, mas já me dou por satisfeita em tentar.

Brigitte não morreu. Continua viva em uma lição que transcende a sua história: quando a maquiagem da vida desbota, o verdadeiro luxo é rir de si mesmo e seguir devagar, leve, sem eufemismos ou arrependimentos. Não há caminho melhor para deixar putas lições.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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Pagu   https://www.youtube.com/watch?v=ioIiO4NccMU&t=13s

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