Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

CARLOS CASTELO Com Pina e Pooh no Porto

Libel SanRo/Pixabay

Com Pina e Pooh no Porto

  • Carlos Castelo

O Brasil é um celeiro de cronistas. Em outras plagas, por outro lado, existem grandes cultores do gênero. Um deles é o português António Manuel Pina, poeta manifesto, mas também notável prosador.

Noite dessas tive o privilégio de ouvir uma história de alguém que o conheceu pessoalmente. O poeta Leonardo Gandolfi esteve com Pina no início de 2007, quando residia no Porto. Encontrou o autor para conseguir um autógrafo e, sabendo de sua fama de bom papo, a fim de jogar conversa fora.

O autor do livro Robinson Crusoé e seus amigos conta que o poeta citou muitos filmes que ele deveria assistir, e disse que ninguém poderia morrer sem ver um em específico: The Night of the Hunter, dirigido em 1955 por Charles Laughton (o título brasileiro é O Mensageiro do Diabo). Trata-se de um suspense de grande violência psicológica. Uma história nada infantil contada a partir do ponto de vista das crianças.

Para Gandolfi esta é uma das chaves para entrar no universo de Pina. Uma segunda porta seriam as aventuras de Winnie-the-Pooh. Sim, aquele ursinho de pelúcia que vive de fazer perguntas bobas, inventar canções, e passar por todos os tipos de aventuras, sem nunca acumular qualquer quantidade de conhecimento intelectual. Nem perder sua singela felicidade.

Pina e Pooh, num mesmo texto, pode parecer uma contradição. Mas Gandolfi ouviu do próprio que as mensagens do ursinho, consideradas de feição taoísta, eram importantes para sua vida e obra.

Após o relato sobre a reunião entre os dois poetas, voltei ao meu apartamento e fiz a lição de casa. Mergulhei nos livros de Winnie-the-Pooh disponíveis em português, e assisti ao longa de Laughton. Só revisitei sua poesia e passei a ler a antologia Crónica, Saudade da Literatura, depois disso.

Notei na prosa de Pina, um caminho (ou um Tao) semelhante ao da impermanência/permanência presente em seus versos. Como ele mesmo registrou no prefácio de O Anacronista: o singular fulgor literário dessa escrita, qualquer que seja o assunto de cada crônica, resgata a generalidade delas da sua efemeridade ou passagem e faz que o seu passar seja “o seu essencial e contraditório modo de permanecer”.

A última frase até me lembrou um trecho de Permanência, de Drummond, em Claro Enigma:

“E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono

selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,

ou nunca fomos, e, contudo, arde em nós

à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.”

Emergem desses textos jornalísticos, de 1984 a 2012, reunidos por Sousa Dias, muito da substância de O Mensageiro do Diabo e do urso inventado por A. A. Milne em 1924. Como disse o poeta cronista, aos 65 anos, ao jornal Público:

“É (um ursinho) muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, um desejo de deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado – que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas.

Grande parte do material de Manuel António Pina no jornalismo (com saudade da literatura) é de cunho social. Ele usou, como poucos, a ironia e a auto irrisão para ridicularizar seus alvos. Porém, em especial nos escritos para a revista Notícias Magazine, em 2007, pareceu engendrar uma nova persona. Como nesse brevíssimo perfil que concebeu da poeta Fiama Hasse: “o sorriso caminhava à sua frente, transportando-a mal tocando o chão”.

Era quando o poeta virava cronista, e o cronista se deixava atravessar pelas coisas. Winnie-the-Pooh curtiria.

*CARLOS CASTELO, jornalista

(Texto publicado no Estadão)

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