Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Casa de farinha

Reprodução/Cícero RC Omena/Wikimedia Commons

Casa de farinha

  • Hayton Rocha

Famintos e com sede, chegávamos à zona rural de Colinas, no oeste maranhense, logo depois do São João de 1967. Ali moravam meus avós paternos, Mãe Sussú e Pai “Simente”, alcunha poética para um agricultor de subsistência ou simplificação de “Nascimento”, sobrenome português de origem religiosa emprestado a cristãos nascidos em 25 de dezembro.

Mais de meio século adiante, é difícil imaginar como uma família (pais e sete filhos) viajou numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1.300 km de estradas esburacadas, na lama ou na poeira, a partir do sertão paraibano. Jornada, inclusive, com desfecho épico: a légua final, escorregadia e enladeirada, se deu sobre uma tropa de jumentos.

Como esquecer do fim de tarde em que Pai Simente, sentado na porta de casa, ao lado de uma escarradeira, quase infarta por minha causa? Tio Marcelino, que preparava fogos de artifício, deixara próximo da janela algumas tabocas (gomos de bambu cheios de pólvora), enfileiradas como pirulitos num tabuleiro. Buliçoso, encostei uma brasa no estopim de uma delas para ver o que aconteceria.

Foguetões subiram assobiando e iluminaram o céu, ofuscando as primeiras estrelas. Meus pais, que raspavam pratos de maria-isabel – arroz puxado no alho com carne de sol picada –, correram da cozinha até a sala onde me encontraram com a cara de sonso, sem atinar para o que poderia ter ocorrido à cobertura de palha de babaçu de todas as casas do povoado.

Como não recordar do abraço quente e apertado de Mãe Sussú e do olhar tolerante de Pai Simente, livrando-me de uma surra? Neto é neto no coração dos avós, com ou sem a anuência dos pais.

Na manhã seguinte, Bento, meu primo, admirou-se da balinheira (estilingue) que eu trouxera. Ele também usava uma arma poderosa: o bodoque caiçara, arco com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam “balas” de barro. Além do parentesco, em comum entre nós havia apenas o propósito de extinguir as rolinhas fogo-apagou.

O encanto pelo brinquedo alheio nos levou a trocar as armas, e o que se viu foram polegares e indicadores duramente castigados durante a aprendizagem. Esfolamos os dedos e não acertamos as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Os deuses das matas nos pouparam desse remorso.

O mundo mudaria quando vi pela primeira vez uma casa de farinha. Depois da arranca da mandioca, adultos a descascavam e ralavam até virar massa. Em seguida, extraíam a água numa prensa, antes de peneirar a massa para retirar impurezas. O que sobrava, seguia para ser mexido numa chapa enorme, no fogo a lenha, até virar farinha.

Não me deixaram raspar a mandioca no caititu (cilindro com serrilhas metálicas), nem mexer a farinha na chapa quente. Pensei que tinha jeito pra coisa, como achava que usar o moedor de carnes era a coisa mais besta deste mundo, apesar dos nove anos de idade. Soube que a casa de farinha não existe mais. Praga de menino? Minha, juro que não foi.

Triglicerídeos à parte, ali descobri do que uma boa farinha era capaz de provocar quando misturada à água em que cozida a carne ou o peixe: o bendito pirão que me leva, até hoje e sem culpa alguma, a reincidir no pecado capital da gula.

E como não lembrar dos beijús de tapioca e dos bolinhos de farinha de arroz, servidos com café coado? E das redes espalhadas pela casa na hora de dormir, onde o ‘dono” de cada uma, depois que as lamparinas eram apagadas, só poderia ser identificado pelo par de chinelas?

Havia nas proximidades do sítio um olho d’água onde algumas mulheres, fiéis à etnia de seus antepassados Timbiras, após lavarem e enxaguarem trouxas e mais trouxas de roupas, tomavam banho nuas em pelo. Pena que alguns adultos, por motivos que desconheço, não me deixaram matar a minha curiosidade, digamos, antropológica.

No dia da volta, chorei bastante. Obrigaram-me a deixar o bodoque caiçara, por falta de espaço no bagageiro da Rural Willys. Ainda faríamos escala em Caxias, já próxima da fronteira com o Piauí, onde meu pai havia morado antes de migrar para a Paraíba.

Ardia de febre quando chegamos. Era o sarampo. Assim como já acontecera em anos anteriores, nas temporadas de catapora (varicela), caxumba (papeira) e coqueluche (tosse-comprida), a doença derrubaria também meus irmãos. Ser o primeiro a contrair teve seu lado positivo: poder tomar guaraná, leite em pó e comer maçã, além de desfrutar do cuidado prioritário de uma mãe de muitos.

O mundo deu muitas voltas de lá pra cá. Tia Cristina, que desapareceria nos primeiros dias da peste que virou o planeta de ponta cabeça meio século depois, antes de partir me contou que o sítio em que viveram Mãe Sussú e Pai Simente já dispõe de energia elétrica e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas com TV a cabo.

Sei que paredes e medos mudam de lugar, que a gente embrutece e até desaprende a chorar nossas perdas. Mas nada neste mundo apaga as coisas e cores guardadas que a saudade, volta e meia, nos pede pra remexer.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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