Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Certas perguntas

Divulgação GDF/Bento Viana

Certas perguntas

  • Hayton Rocha

“Atenção, tripulação, preparar para o pouso!”. Mais uma vez, acordo com este velho anúncio, vindo da cabine de comando do avião que iniciava a manobra de aterrisagem.

Volta e meia, querem saber de mim, como alguém que nasceu na Paraíba, foi criado em Alagoas, morou em Pernambuco e na Bahia, gosta tanto de Brasília.

Digo que não sei. É o tipo de questionamento que pressupõe que as pessoas costumam se sentir mais felizes quando moram perto do mar, com o benefício da umidade e de alguns espaços associados ao prazer e à preguiça.

Certas perguntas não devem ser feitas! Sobrevoando Brasília, essa miragem de curvas, retas e mistérios debaixo do céu do Cerrado, volto sem gravata, paletó nem sapatos, para fazer o que mais gosto ultimamente: nada, exceto contar histórias, tateando na nebulosa fronteira entre o testemunho e a fantasia.

“Meu Deus, mas que cidade linda!”, cantava Renato Russo em sua épica Faroeste Caboclo, quando aqui cheguei pela primeira vez, em 1981, para participar por 100 dias de um curso de aperfeiçoamento profissional.

Daqui de cima, revejo a ponte sobre o Lago Paranoá, ligando o Setor de Clubes ao Pontão do Lago Sul, e me vem à memória a figura risonha e robusta de Luiz Arnaud, que morava por perto e com quem convivi nos primeiros dias de trabalho sete anos mais tarde, em 1988.

Certa manhã, numa conversa à toa regada a café com pão de queijo, ele me dizia da preocupação de sua esposa, Valéria:

– Olhe só, Arataca, ela quer saber com quem ando aprendendo este vocabulário de jardineiro – disse, numa óbvia alusão ao palavreado e ao sotaque do novo colega. Eu.

– Porra, bicho! Ela não pode ser injusta assim com o coitado do jardineiro, que já ganha uma mixaria e ainda querem que fale como se tivesse nascido com trancelim de ouro! – devolvi, recorrendo à interjeição mais usada pelos nativos das nações de língua portuguesa, a quarta mais falada no mundo.

Ele passava horas contando das descobertas de sua escadinha de filhas: Juju, Bebel e Didi. Falava da casa hipotecada no Lago Sul, onde aos sábados lambia os dedos roliços enquanto preparava a galinhada numa panela de barro. Da loja de vinhos que abrira com um parceiro no ainda despovoado Lago Norte. Do tanto que tudo mudara desde que virou bancário em Conceição do Mato Dentro (MG).

Todo dia, às oito, já folheava os classificados do Correio Braziliense em busca de “achados” (oferta de compra ou venda de veículos, imóveis, linhas telefônicas etc.). E gargalhava lendo anúncios de garotas de programa, que atendiam em quitinetes ou em prédios comerciais com áreas adaptadas ao exercício de uma das mais antigas profissões.

Demorou pouco a aprontar comigo, que havia comentado sobre a intenção de adquirir um carro usado. Numa tarde, depois do almoço, ele sumiu por alguns minutos da sala onde trabalhávamos, após colocar furtivamente um bilhete sobre a minha mesa dizendo: “Não quis deixar recado. Pede retorno pelo telefone…” – estava lá um número anotado.

Disquei supondo que fosse o dono de um Passat em que eu estava de olho. Tive então que ouvir insultos e ofensas partindo de uma jovem morta de sono, que passara a madrugada de terça para quarta-feira trabalhando duro, envolvida de alma e corpo com a inesgotável demanda do submundo parlamentar.

Ano e meio depois, retornei para o Nordeste (Porto Calvo, interior de Alagoas). Trocávamos cartas e telefonemas. Não havia e-mails nem videochamadas. Um dia, ele riu quando lhe contei de um rebanho de cabras com chocalhos, salivando, que invadira a sala de visitas de minha casa, atraídas pelos cachos de uvas verdes artificiais que enfeitavam a mesa de centro.

De repente, muda o tom de voz e se queixa:

– Nem sei por que estou rindo tanto. Se você me encontrar não vai me reconhecer…

– O que houve?!

– Tá difícil… Perdi metade do peso. O Arnaud que você conheceu não existe mais. O tratamento tá acabando comigo.

– Puta que pariu! – gritei, mesmo sem saber ao certo da extensão da doença –, mas você é novo, forte, tem plano de saúde e quatro “meninas” pra cuidar. Vai resistir, sim!

– Só elas me fazem continuar na briga…

A briga não demorou. O nocaute foi inevitável.

Quase dez anos depois, em 2000, voltei a morar em Brasília, mas nunca mais soube do paradeiro de Valéria, Juju, Bebel e Didi. Nem o Google, que surgiria entre nós a partir de 2005, me ajudou.

E agora me pego pensativo, revendo Luiz Arnaud a caminho de casa, atravessando aquela ponte sobre o Lago Paranoá. Como teria sido sobreviver por suas “meninas” de lá até aqui? Do que estaríamos rindo agora, numa conversa à toa regada a café com pão de queijo?

Certas perguntas não devem ser feitas nem a mim mesmo. Nunca sei as respostas.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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