Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Códigos e jargões

Ryan McGuire/Pixabay

Códigos e jargões

  • Hayton Rocha

O mundo corporativo está cheio de códigos e jargões que, além de facilitar o dia a dia, revelam muito mais do que imaginamos. Não falo da enxurrada de estrangeirismos como approach, benchmark, coach, deadline, feedback, home office, know-how, networking, spread, turnover e outros. Esses já viraram lugar-comum, e a incorporação deles parece irreversível. Até Ariano Suassuna teria dificuldade em chamar o mouse de “rato”. E o notebook de hoje, em suas oito letras, que as crianças de hoje aprendem a usar antes mesmo de falar, já substitui muito bem o combo caderno, caneta e dicionário.

Depois de quatro décadas nas entranhas de uma organização bicentenária, colecionei expressões impagáveis que só quem viveu esse ambiente entende. Em uma empresa tradicional cuja marca no Brasil é sinônimo de “banco”, parte do repertório remontava às grandes guerras do século passado:

Bateria – área dos caixas.

Plataforma – área de atendimento aos clientes.

Retaguarda – setor responsável, então, pelo processamento dos documentos gerados na Bateria.

Ajudante de serviço – cargo comissionado parecido com ajudante de ordens, espécie de secretário pessoal de um oficial militar, da polícia ou do governo.

Pé na cova – abono concedido a funcionário prestes a se aposentar, mas que a empresa preferia manter na ativa por mais algum tempo.

As confusões que esses termos criavam também eram inesquecíveis. Um caso famoso ocorreu na Bahia, quando um caixa orientou um cliente a procurar a Plataforma para resolver seu problema. O cliente, achando que se referia ao bairro Plataforma, pegou o ônibus até o subúrbio de Salvador.

Códigos como o modelo 03/14, uma folha de papel A4 usada para correspondências e contratos, eram corriqueiros. Talvez por inspiração da prática dos bilhetinhos fartamente utilizados na época, consagrados por Jânio Quadros – o homem utilizou um deles até para renunciar à Presidência da República –, o 03/14 foi sendo recortado em partes iguais, também padronizadas no material de expediente: A5 (metade), A6 (1/4) e A7 (1/8). E o A7 ganhou grande fama como “oitavado”, uma espécie de ancestral do post-it sem a faixa adesiva, ideal para rabiscos rápidos e encaminhamento interno de documentos.

Para arquivar, utilizava-se o grampo trilho metalizado, conhecido como “macho e fêmea”, um termo mais revelador de carências afetivas do que da função do material.

Outra expressão picante era “gozar no papel”. Quando alguém chegava ao prazo fatal para gozar férias, mas não podia se ausentar, a solução era registrá-las formalmente, porém seguir trabalhando. Depois, compensava com folgas, assinando a folha de ponto.

Esses códigos e jargões, criados para facilitar a vida, às vezes se tornavam verdadeiros enigmas. Por exemplo, “espelho”, para designar o documento que especificava o ordenado bruto e suas deduções, para mim refletia bem mais que isso. Espelho, espelho meu, existiu alguém mais inconformado do que eu diante do salário líquido no começo de tudo?

Outro clássico era a “igrejinha”, um formulário com aba dobrável, usado para pedir documentos ou cobrar dívidas atrasadas. Tinha uma aparência quase solene, como uma convocação divina ao Juízo Final.

E o Cheque Ouro, inovação dos anos 1960, onde o banco garantia o pagamento de cheques de alguns clientes, com ou sem fundos (os cheques, claro!)? Virou sinônimo de cheque especial, alívio para muitos, mas armadilha para outros tantos.

Quando passei pela área de RH, descobri outras expressões igualmente curiosas:

Esmolão – funcionário que perdia o cargo e aguardava, recebendo salário, por uma nova função. Quando transitava de um lugar para outro, sem cargo definido, dizia-se que estava “arrastando correntes” – uma imagem longe de glamurosa.

Sorvetão – alguém em situação análoga, mas sem perspectivas de reaproveitamento, cujo salário “derretia” em alguns meses até secar.

Mesmo usadas com humor ou resignação, essas expressões escondiam verdades incômodas: elas suavizavam dramas humanos profundos, de gente tensa e à espera de um destino incerto. Funcionavam como uma espécie de escudo, mas, no fundo, havia uma realidade implacável.

A história mais curiosa que ouvi sobre esses códigos e jargões me foi contada por um querido amigo. Antigamente, para apurar a reputação de uma pessoa, investigava-se por meio dos “influenciadores analógicos” locais, da igreja ao cabaré (normalmente, o mais certeiro nas informações), passando por barbearia, bodegas e botecos.

Meu amigo tinha uma fonte especial: um velhinho que sabia tudo de todos. Enquanto escutava sua fonte, ele resumia os relatos com números. Pares significavam boas referências; ímpares, más notícias. Por exemplo, 10, 12 e 14 eram sinônimos de honesto, bem referido, pontual em seus pagamentos. Já 9, 11 e 13 indicavam emitente de cheques sem fundos, pagador com atraso, envolvido em ações cíveis, criminais ou títulos protestados.

Certa vez, investigando um comerciante interessado em levantar um “papagaio” – outro jargão exótico para nota promissória –, o velhinho foi categórico: “Esse aí é 11, 13, 15… E olhe lá, hein?! Daqui a pouco chega a 19!”, liquidou a fatura.

No fim das contas, na fala cifrada de uma organização ou nas palavras astutas de um contador de histórias, a verdade sempre acaba se revelando, mesmo que venha disfarçada de códigos enigmáticos. E jargões podem distorcer ou suavizar, mas a essência das coisas vem à tona. Seja deadline ou pé na cova, a verdade sempre retorna, como um cheque sem fundos. Se é que ainda existem – cheques e verdades.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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