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Colapso da gritaria
- Heraldo Palmeira
Não eram poucos os que acreditavam, baseados no que diziam os astrólogos, que 2001 traria junto a sonhada Era de Aquário – embora os astrônomos digam que só virá em 2600 –, ideia antiga de que a psique humana passaria por transformação radical e abraçaria novos valores e formas de pensar. Ou seja, até nisso nos dispusemos a crer, talvez como sinal da nossa esperança em dias melhores.
Não é para menos, havia uma Guerra do Vietnã em curso, pirando quase todo mundo e gerando pérolas musicais como Hair, um caleidoscópio da porra-louquice que se tinha como válvula de escape para sair daquela pressão movida a bombas. E das convulsões sociais que, bem ou mal, legaram algumas conquistas seminais.
Finalmente, o século 21 chegou trazendo diversas viradas além da simples mudança de milênio que fascinou tanta gente por tanto tempo – inclusive com a suspeita assombrada de que traria junto o fim do mundo no ano 2000, algo que virou uma crendice com relativo poder de convencimento para um tanto significativo de gente. É certo que o mundo não acabou, mas um certo mundo que conhecemos também não existe mais.
Apesar do famoso Bug do Milênio, ele mesmo um fiasco monumental que demandou grandes investimentos preventivos e aqueceu o mercado de programadores e analistas de computação, a passagem ocorreu do mesmo jeito que se repete desde que o mundo é mundo – o primeiro segundo depois do último e tudo era o novo tempo. Aquele momento tão aguardado chegou ao calendário como uma espécie de epílogo do robusto conjunto de conquistas surgidas no pós-guerra, embaladas pela revolução cultural que mexeu definitivamente com o modo de viver da humanidade.
Muitas das conquistas que chegavam naquele cortejo reluzente de entrada de um ano novo ampliado traziam suas cicatrizes de tempos de desigualdades e injustiças – ou não seríamos a velha humanidade mais que conhecida. Mas quem estava vivo podia sentir o privilégio de ter vivido ou ouvido falar do que aconteceu num passado ainda palpável das décadas eletrizantes desde 1945, além de testemunhar uma mudança de século elevada à potência de novo milênio.
Na verdade, há muito por fazer e seria saudável distender as animosidades para evitar discussões infrutíferas, nas quais se perde tempo precioso. É impressionante como a humanidade, equipada como nunca e com acesso à informação como jamais se viu, perca tanto tempo com embates desgastantes guiados por desinformação, narrativas e fake news.
Ultrapassada a primeira década do novo milênio, ganhou corpo e dinamismo o que ficou conhecido como “onda woke” (acordei), uma espécie de movimento de parte engajada da sociedade que foi ganhando tons radicais na defesa de temas relacionados a gênero, raça e orientação sexual. Encampada pelo discurso político progressista, explodiu com todos os excessos legitimados pela terra sem lei das redes sociais.
A partir do laboratório nas universidades, o movimento seguiu para o ambiente corporativo e chegou à publicidade, impondo uma série de regras não escritas para os anunciantes e para a própria forma de comunicar propagandas. Passou a ser “obrigatório” incluir pessoas por cotas, posturas e discursos, sob pena de o mundo desabar pelo “cancelamento” dos “infratores”.
O ambiente de antagonismo crescente entre progressistas e conservadores foi potencializado pelo assassinato de George Floyd (um homem negro) por Derek Chauvin (um policial branco que terminou condenado a 22 anos e meio pelo crime), em Minneapolis. A onda de protestos globais que se seguiu gerou imensa pressão para impor políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) nas organizações públicas e privadas.
O resultado não poderia ser mais previsível: interferiu diretamente no comportamento da sociedade e estabeleceu, com base na intolerância, focos de desentendimento inconciliáveis, comprovando que ideologias rodando nos extremos dificilmente produzem algo positivo, ainda mais quando tudo é tratado no grito.
Como o excesso de grito tende a provocar surdez, inclusive seletiva, passados agora quatro anos essa pauta começa a perder força no mundo corporativo depois das polarizações, demandas excessivas e verdadeiras guerras culturais. Está em curso uma reação conservadora que vai limitar ainda mais as discussões equilibradas de qualquer tema.
Mesmo depois de várias ações implantadas com grandes investimentos, as próprias empresas foram percebendo que os esforços tinham pouca efetividade e, de quebra, trouxeram perdas econômicas e perigosos arranhões na imagem. Diversos executivos têm se pronunciado reconhecendo que as pressões externas foram determinantes, que havia muito marketing, distância da realidade e falta de empatia da sociedade. “Assim como foi com ESG, com governança corporativa, o tema da diversidade serve para sair na foto, colocar no checklist, mas as iniciativas não vão adiante, não são vistas como estratégicas e nem estão nos processos de gestão”, afirma Angela Donaggio, fundadora da consultoria Virtuous Company.
Situações impostas não costumam trazer bons resultados e podem levar à Justiça questões que deveriam ser afirmativas de fato, não estivessem contaminadas por ideologia e arrivismo. Em 2023, a Suprema Corte americana decidiu pela inconstitucionalidade de ações para aumentar a quantidade de estudantes negros, latinos e outros grupos com pouca representatividade nas universidades do país. Diversos estados controlados pelos republicanos vêm aprovando legislações que limitam ações discussões e políticas relacionadas com diversidade. A ensolarada Flórida aprovou em 2022 a Stop Woke Act, uma lei destinada a restringir o que as empresas podem ou não dizer em seus treinamentos, e as escolas em salas de aula, a respeito de temas como raça, gênero e sexualidade. Todo esse pacote legal abriu brechas para outras demandas conservadoras.
Também sobram sinais de desgaste do discurso politicamente correto no cotidiano, e muito desse quadro é resultado do extremismo da militância. A própria imprensa mais engajada já começa a diminuir drasticamente a frequência de uso de certas expressões como “privilégio branco” – caso do The New York Times. Acrescente-se pesquisa recente do Gallup/Bentley em que a maioria das pessoas considera que empresas não devem misturar suas mensagens comerciais com questões identitárias. E a revista The Economist publicou ampla matéria a respeito do recuo da onda woke.
Não por acaso, o ambiente das grandes corporações começa a refletir esse cenário. Tanto que, depois de experiências que se mostraram malsucedidas em diversas frentes, inclusive com quedas de vendas e reações indignadas de consumidores, gigantes como Google, Meta, Microsoft, Zoom, Snap, Budweiser, Disney, Ford, Toyota, John Deere, Harley-Davidson, Jack Daniel’s, Tractor Supply estão mudando posicionamentos, cortando áreas de diversidade, revendo políticas de cotas, e já iniciaram o movimento para se afastar das polarizações. Sim, estão modificando o discurso rapidamente, comprovando e avalizando a crescente onda anti-woke.
Boa parte dessas empresas – mesmo as tecnológicas – têm clientela fiel com perfil historicamente conservador. Mesmo assim, pressionadas pelas cobranças do ativismo inflexível, foram arrastadas para um modelo de discurso politicamente correto que começa a dar sinais de colapso.
A Budweiser optou por uma campanha estrelada por uma ativista trans, inclusive utilizando sua foto nas latinhas de cerveja, e experimentou prejuízo histórico. A John Deere, gigante dos implementos agrícolas, também sentiu na pele os efeitos negativos. “A existência de cotas de diversidade e identificação de pronomes nunca foi e não é política da companhia”, afirmou em comunicado depois de anunciar demissões causadas pela queda de vendas e lucros. “Ouvimos de nossos clientes que os decepcionamos. Levamos esse feedback a sério”, declarou sem rodeios a Tractor Supply, grande varejista de produtos rurais. “O verdadeiro trabalho de mudança sistêmica tipicamente associado aos programas de DEI não é mais crítico para os negócios como em 2020”, escreveu em comunicado corporativo um líder da equipe interna focada em diversidade e inclusão, desmontada pela Microsoft em julho.
É visível que “woke” vem se tornando um adjetivo pejorativo. No Brasil, as empresas têm mantido uma posição de neutralidade. “Acredito que seja por dois motivos: ou porque essa empresa nacional nunca se posicionou em relação à temática, ou porque prefere se manter em silêncio, que é mais conveniente diante do cenário de polarização que a gente tem”, diz Viviane Elias Moreira, professora e integrante de comitês consultivos de ESG.
No artigo A Traição da Diversidade (link abaixo), o cientista político e professor Fernando Schüler trata do tema de maneira ampla. Ele acredita que o tal comercial da cerveja Bud Light foi o ponto dessa virada, e que a mudança de posicionamento das empresas não se deu no vácuo – sinais emitidos pelo recuo editorial do The New York Times, pesquisas como a do Gallup/Bentley e a matéria da The Economist não passam despercebidos. “Uma hipótese é de que as pessoas, devagar, vão aprendendo a separar o joio do trigo. Aprendendo que é ótimo cultivar valores como o respeito, a tolerância e o acesso a oportunidades. Mas que é péssimo que esses valores, reunidos sob a ideia generosa da diversidade, se convertam em ideologia. Com tudo a que uma ideologia tem direito: em vez da abertura à diferença, o controle; em vez do respeito, a lógica do conflito permanente; este estranho destino que parece se seguir a tudo que se converte em ideologia: o esquecimento dos melhores valores que estavam lá, quando tudo começou”, argumenta Schüler.
Não fosse essa Era de Aquário, do jeito que nos sopraram, uma grande viagem de fuga hippie naqueles tempos sem lenço e sem documento da contracultura, não seria má ideia escrevermos um novo musical Hair para atrair dias melhores repletos de novos valores e formas de pensar. Quem sabe, embalados com o espírito paz e amor que nos venderam e nunca entregaram. A questão é que esses dias melhores não chegarão por obra e graça do desconhecido, terão de ser construídos por pessoas com a nossa cara. Ou seguiremos os mesmos e vivendo como os nossos pais, alguém já disse.
A sociedade dá claros sinais de cansaço e se prepara para o colapso dessa gritaria que substituiu o debate das causas justas por discursos de intolerância. Quem realmente está excluído precisa de inclusão e ela não virá por extremos de militância política progressista ou conservadora, muito menos por eleição de grupos com base no famigerado “nós e eles” que apenas condena os excluídos ao isolamento em guetos ainda mais discriminativos – raciais, sexuais, religiosos, culturais.
Soa incompreensível que, em pleno século 21 e com todo o aparato tecnológico e de conhecimento que a sociedade dispõe, nos falte entendimento humano para apostar em educação como plataforma de conquistas pessoais, que o slogan comum não seja simplesmente “vidas importam”. A vida seria bem mais suportável. E inteligente.
Se já tivéssemos alcançado esse grau de consciência, não seria necessária essa gritaria insana. Quem desperdiçou fichas na Era de Aquário poderia ter aprendido a nadar, e não estaria se afogando nas águas desta Era de Peixes em curso.
Saiba mais
https://veja.abril.com.br/coluna/fernando-schuler/a-traicao-da-diversidade