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Computação quântica assusta?
- Heraldo Palmeira
A próxima fronteira do mundo digital poderá ser a computação quântica, que significa o uso da mecânica quântica para fazer cálculos em um hardware especializado. Os computadores quânticos aproveitam o comportamento particular da física quântica – emaranhamento, interferência quântica e sobreposição –, aplicando-o à computação para apresentar novos conceitos aos métodos de programação conhecidos e ampliando consideravelmente a capacidade de processamento.
A computação quântica tem como unidade básica de informações os Quantum Bits (QuBits), bits quânticos cuja função é semelhante ao bit da computação clássica – são compostos por partículas subatômicas frágeis, em estados quânticos delicados e facilmente interrompidos por fatores comuns ao ambiente como campos magnéticos, pequenas quantidades de calor, raios cósmicos e sinais eletrônicos.
Entretanto, os QuBits se comportam de forma bastante diferente, já que podem manter uma sobreposição de todos os estados possíveis – as partículas subatômicas podem existir em mais de um estado simultaneamente –, ao contrário dos bits, que são binários e só contêm uma posição (0 ou 1). Assim, enquanto seus “adversários” estão limitados a uma realidade binária, eles podem assumir qualquer sobreposição desses valores, realizando operações computacionais complexas e consumindo menos de energia.
Depois de todos esses “palavrões” tecnológicos solenemente apresentados, não se acanhe: se você nunca ouviu sequer uma menção a respeito e continua tentando processar tudo isso, saiba que a absoluta maioria das pessoas (gente como nós) está na mesmíssima situação. É possível imaginar que as mudanças poderão ser radicais, mas ainda há uma longa estrada a ser percorrida. Até mesmo rolar um novo curso que aponte outras direções, não será a primeira nem a última vez que isso acontece no ambiente da tecnologia de ponta.
Algo que pode soar estranho é que um computador quântico não necessariamente consegue realizar tarefas com mais rapidez do que os computadores que conhecemos hoje. A diferença é que os quânticos são capazes de causar grande impacto porque solucionam problemas fora do alcance operacional da computação tradicional.
É injusto chamar de tecnologias quânticas rudimentares tudo que já está disponível nesse campo. Com elas é possível, por exemplo, otimizar grandes operações logísticas e monitorar atividades cerebrais de doentes, mesmo que o médico e o paciente estejam distantes milhares de quilômetros.
O que se avizinha é impressionante. Por exemplo, invenção de novos materiais e medicamentos, criação de outros métodos seguros de comunicação e desenvolvimento de estratégias mais inteligentes de negociação financeira. Também será possível simular sistemas vivos, a dinâmica climática da Terra, a formação de galáxias e coisas que jamais pensamos possíveis. “A perspectiva da computação quântica abre áreas totalmente novas da tecnologia. Podemos desbloquear soluções que simplesmente não poderíamos nem sonhar em alcançar no passado”, afirma David Cowan, sócio da Bessemer Venture Partners, empresa de capital de risco de San Francisco (EUA).
Neste momento, o Osprev, da IBM, é o computador quântico mais avançado. Mesmo assim, ele dispõe de apenas 433 QuBits. Segundo os cientistas da computação, 1 milhão (de QuBits) seria o patamar adequado para explorar o potencial da tecnologia.
Os mais otimistas apostam que a virada poderá ocorrer entre 5 e 20 anos. Já Peter Shor, matemático norte-americano criador do algoritmo quântico que leva seu nome, acredita que ainda faltam muitos avanços conceituais e de engenharia até que os computadores quânticos possam ser dimensionados para os 1mn QuBits necessários: “Eu prevejo entre 20 e 40 anos”, afirma. Também não descarta que os desafios da física sejam incontornáveis a ponto de nunca ser possível construir computadores quânticos viáveis.
Steve Brierley, presidente da Riverline, empresa dedicada a desenvolver sistemas operacionais para computadores quânticos, traduz esse patamar de desempenho e ajuda a imaginar o tempo que ainda se mostra necessário: “Os melhores computadores quânticos da atualidade, produzidos em países como a China e no Google, podem realizar cerca de 100 operações antes de falhar. Para implementar o Algoritmo de Shor, você precisa de algo como um trilhão de operações quânticas antes da falha”.
A líder de produto do setor quântico da Microsoft, Julia Love, tem outra visão e acredita que “estamos esperando anos e não décadas para esse nível de inovação”, entendendo que os pesquisadores estão trabalhando firmemente e lançando mão de técnicas engenhosas para superar os desafios.
Essas divergências sobre o desenvolvimento de computadores quânticos robustos têm provocado uma previsão de “inverno quântico” por parte de investidores, que começam a questionar a viabilidade da aposta em razão do tempo que ainda pode demorar até uma vantagem quântica sobre a computação tradicional.
Claro que está em curso uma corrida para tirar a computação quântica dos laboratórios e jogá-la no mundo real. A disputa envolve as principais potências mundiais, que desejam decifrar os métodos de criptografia existentes e proteger as comunicações de dados em um mundo quântico. Por isso, governos, corporações e capitais de risco têm investido pesadamente para sair na frente e dominar a nova tecnologia. Essa competição está relacionada a dois fatores de grande relevância, as disputas geopolítica e comercial, onde a rivalidade EUA-China é um tempero adicional para a receita do primeiro computador quântico robusto do mundo.
Por isso, estão nesse jogo pesado gigantes tecnológicos como Google, IBM, Intel, Microsoft e Honeywell, sem perder de vista os visionários escondidos em start-ups, que receberam investimentos de US$ 2,35 bilhões (R$ 11,58 bilhões) em 2022. Diante da importância estratégica da tecnologia quântica, alguns governos aumentaram seus gastos no setor. EUA e União Europeia (juntos), US$ 3 bilhões (R$ 14,79 bilhões). Reino Unido (para os próximos 10 anos), £ 2,5 bilhões (R$ 15,42 bilhões). China, US$ 15,3 bilhões (R$ 75,42 bilhões).
Tudo faz sentido pois, segundo a consultoria McKinsey, as quatro indústrias que seriam mais impactadas pela nova tecnologia – automotiva, ciências da vida, química e serviços financeiros – poderão crescer US$ 1,3 trilhão (R$ 6,4 trilhões) em valor de mercado até 2035.
Entendendo a ameaça A grande ameaça prevista com a chegada da computação quântica são seus efeitos sobre a criptografia utilizada na computação clássica, um sistema de códigos que garante proteção de informações – redes domésticas de WiFi, dados pessoais e bancários, prontuários eletrônicos, sigilos comerciais, segredos jurídicos, industriais e militares –, um elemento fundamental para a confidencialidade de dados sensíveis do mundo digital.
Mesmo as criptografias bem implementadas, baseadas em modelos matemáticos complexos empregados em algoritmos como AES, RSA ou ECDSA, podem ser quebradas desde que haja poder de processamento e tempo. Nesse caso, a capacidade de processamento tem de ser massiva e o fator tempo pode ser traduzido em alguns séculos, milhões ou mesmo bilhões de anos. A chave de segurança estabelecida é o desafio a ser vencido – quanto maior, mais exigirá processamento e tempo para o acesso hostil.
A computação quântica muda esse cenário, pois será possível utilizar algo como o Algoritmo de Shor para simplificar a fatoração de números em seus componentes principais (números primos), algo inacessível aos computadores tradicionais quando (os números) são muito grandes – princípio que baseia muitos algoritmos da criptografia assimétrica utilizada hoje.
O grande temor é que alguns anos de evolução permitam ao computador quântico quebrar os algoritmos mais complexos que protegem as redes, transformando a criptografia de chave pública num controle de segurança inútil.
Claro que há reações a caminho. Diversos estudos estão tratando da criptografia pós-quântica – multivariada ou baseada em reticulados e hash. Mesmo não utilizando os princípios da mecânica quântica, ela não pode ser quebrada pelos computadores quânticos. Também utiliza operações matemáticas complexas e não permite à computação quântica reverter ao estado original os códigos de segurança estabelecidos para proteger os dados.
O dia fatal O Q-day (dia-Q) é a denominação para o dia em que os computadores quânticos teriam finalmente o poder de “quebrar a internet”, inutilizando todos os procedimentos globais de segurança cibernética existente. A tradução sombria disso é que a criptografia como conhecemos hoje se tornaria obsoleta. As redes protegidas por métodos tradicionais estariam irremediavelmente vulneráveis e os dados ficariam expostos.
O Q-day afetaria governos, big techs, sistemas industriais, comerciais, militares e usuários da internet em geral. O único alento é que ainda não há previsão de quando poderia ocorrer, apenas que falta muito tempo. No estágio atual, as máquinas permanecem instáveis no trato das partículas subatômicas, o que dificulta a realização de operações sofisticadas por períodos longos o suficiente para garantir eficiência ao uso da tecnologia como alternativa à computação tradicional.
Funcionamento Um computador quântico é composto de três partes principais: uma área para abrigar os QuBits, um método de transferência de sinais para QuBits e um computador clássico cuja função é executar programas e enviar instruções.
Em alguns casos, para garantir coerência e reduzir interferências, a unidade que armazena os QuBits deve ser mantida pouco acima do zero absoluto (– 273,15 ºC), a temperatura de menor energia possível, na qual todas as partículas constituintes de um sistema termodinâmico se mantêm inteiramente em repouso. Há também a opção de o armazenamento se dar em câmara de vácuo, de modo a minimizar vibrações e garantir estabilidade. Os sinais da transferência podem ser enviados por laser, micro-ondas e voltagem.