
Reprodução/Centro de Documentação da Universidade de Coimbra
Cravos da Revolução 4
- Heraldo Palmeira
O rádio e a música como elementos fundamentais da democracia
Naquele longínquo 1974 a internet não existia e a TV seguia como produto de luxo, distante da maioria dos lares portugueses. Por isso, o rádio, extremamente popular, e a música tiveram papel fundamental antes, durante e depois da Revolução dos Cravos.
O rádio foi decisivo para o sucesso da missão em razão do alcance e confiabilidade maiores do que o sistema de comunicação dos militares. Definido como meio de comunicação oficial, sinalizou os passos decisivos do golpe para as tropas rebeladas, informou o país a respeito da nova realidade política que estava sendo instalada e divulgou as reações populares de apoio. A adesão da população foi imediata e ultrapassou todas as expectativas dos militares do Movimento das Forças Armadas (MFA).
Muito mais do que textos que pudessem despertar suspeitas, a música teria muito mais facilidade de transmitir instruções pelo rádio. Por isso, teve papel decisivo e definitivo para aquele momento.
A senha dividida Nunca ficou claro por que a senha para colocar o golpe em marcha foi dividida em duas partes. É possível que ao tomar conhecimento na reunião com o jornalista João Paulo Diniz, na noite de 22 de abril, que a Rádio Peninsular, afiliada dos Emissores Associados de Lisboa tinha alcance limitado à capital e arredores, o major Otelo Saraiva de Carvalho já não dispunha de tempo para modificar o plano de ações original.
O militar deve ter decidido que a primeira senha seria mantida apenas para as tropas lisboetas e iniciou uma série de contatos em busca de uma emissora com alcance nacional. Essa movimentação terminou no jornalista Álvaro Guerra, do jornal República, que sugeriu Carlos Albino e o programa independente Limite, levado ao ar na Rádio Renascença, vinculada à Igreja católica, no horário desejado para as comunicações aos militares sublevados no resto do país.
Nem mesmo os regimes mais sanguinários conseguem manter o controle absoluto. A História registra diversas ditaduras feridas de morte por armas que os próprios tiranos fornecem aos opositores. O caso de Portugal é exemplar, ainda mais porque a arma escolhida era singela e intangível, uma música.
O álbum Cantigas do Maio, lançado pelo cantor Zeca Afonso em 1971, foi proibido pela censura mas mereceu da ditadura uma única concessão: a faixa Grândola, Vila Morena (link abaixo) poderia ser tocada exclusivamente pela Rádio Renascença. Sem que o motivo esteja claro, exatamente essa tolerância dos censores terminou sendo o feitiço que matou o feiticeiro.
Naquele período, as músicas ou discos inteiros proibidos pelo regime eram inutilizados pelos censores usando pregos para provocar arranhões definitivos no vinil. A música estava liberada, mas inserida (como faixa 1 do lado B) num álbum censurado de um artista vigiado pela ditadura. Por isso, o álbum estava trancado num armário da emissora, que ficava sob vigilância constante de um agente da ditadura – presença ordinária em estúdios e redações. Diante da impossibilidade de acesso àquele exemplar, foi preciso providenciar outro e aqui a história se desmembra em duas versões.
Na primeira, o jornalista Carlos Albino, colaborador do programa independente Limite, na Rádio Renascença, não só escolheu a música como comprou o álbum Cantigas do Maio na Livraria Opinião. Mais tarde, foi ter com o operador de áudio Manuel Tomaz, um dos produtores, que se encarregou da montagem gravada do trecho extra que serviu como segunda senha.
Na segunda, o jornalista, cantor e militante político José Jorge Leiria, um dos menos de vinte civis portugueses que tinham conhecimento prévio da operação militar, emprestou seu exemplar pessoal de Cantigas do Maio. Consta que nunca foi devolvido, algo que ele jamais lamentou diante da importância daquela cessão.
Para a música tocar Duas músicas passaram à história portuguesa por terem servido de senhas para colocar em curso a operação – enquanto estava em fase de planejamento era tratada pelos militares como “Viragem Histórica” e “Fim-Regime” –, que ganhou imensa adesão popular e culminou na Revolução dos Cravos. Porém, até que as canções fossem finalmente transmitidas como códigos de ação, verdadeiras operações de guerra foram desencadeadas.
Senha 1 (E Depois do Adeus) O jornalista João Paulo Diniz, um jovem de 25 anos, estivera na Guiné-Bissau em campanha da Guerra Colonial Portuguesa sob o comando direto de Otelo Saraiva de Carvalho. Na segunda-feira 22 de abril, o rapaz foi abordado na rua pelo capitão aviador José Inácio da Costa Martins, que se apresentou como emissário do major para convocá-lo a uma reunião.
O jornalista desconfiou que poderia ser uma armadilha da polícia política, mas terminou convencido. O encontro se deu naquela mesma noite num café do Centro Comercial Apolo 70 – majores e capitães costumavam se reunir ali nas noites de sábado para conspirar contra o regime. Diniz deixou o local com uma missão delegada diretamente por Otelo: transmitir a primeira senha musical da revolução.
O desejo do comandante é que fosse tocada a música Venham Mais Cinco, de Zeca Afonso (link abaixo). Entretanto, Diniz alertou que o artista, que já havia sido preso pelo regime, tinha muitas canções censuradas e sua inclusão na programação musical chamaria atenção dos censores. Assim, sugeriu E Depois do Adeus. [composição de José Niza e José Calvário, na voz de Paulo de Carvalho (link abaixo)], uma canção de amor apresentada há menos de vinte dias no Eurovision como representante portuguesa no festival. Como estava tocando muito nas emissoras naquele momento, não despertaria nenhum tipo de suspeita. Depois da escolha da música, também combinaram o texto que viria antes (“Faltam cinco minutos para as 23 horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74, E Depois do Adeus”) e o horário exato da transmissão (22h55 de 24 de abril).
Havia mais: o rapaz tinha motivos particulares e pode ter sido uma questão de honra cumprir aquela missão. No início da manhã de 24 de abril visitou o túmulo do pai, que nos tempos de jovem – Diniz sequer era nascido – havia estado preso dois anos em Cabo Verde por se opor à ditadura de Salazar. Antes de seguir para a rádio jantou com a mãe, a quem revelou o papel histórico que desempenharia naquela noite, e fez o possível para deixá-la tranquila. Diniz tinha consciência de que não poderia falhar. Também estava certo de que seu pai ficaria orgulhoso. “Deixamos de viver sempre a falar baixinho e a desconfiar que o outro poderia ser da PIDE”, festejou Diniz depois de tudo consumado.
Senha 2 (Grândola, Vila Morena) Diante da limitação de alcance do sinal da Rádio Peninsular a Lisboa e arredores, é aceitável presumir que a segunda senha só tenha existido em razão desse detalhe técnico, o que levou o comando da operação a buscar uma segunda emissora, com cobertura nacional, para transmitir um código de comando que chegasse a todas as unidades militares espalhadas pelo país.
O programa Limite havia sido criado por Leite de Vasconcelos (que normalmente gravava a leitura dos poemas) e Manuel Tomaz, e contava com a colaboração de Carlos Albino. Era uma produção independente que colocaram no ar alugando horário na Rádio Renascença. Logo ganhou fama, a partir do terceiro mês já se pagava com publicidade e passou a ser temido pela ditadura, a ponto de ser submetido a duas etapas de censura: a da própria emissora e a do governo.
Zeca Afonso não tocava muito no rádio e seus discos estavam sob vigilância da censura. Mas a canção, composta em 1964, não estava proibida. Talvez por ser uma homenagem até então restrita à vila de Grândola, somente a partir de sua gravação comercial (1971) ganhou popularidade no ambiente estudantil e de resistência política.
Um espetáculo organizado pela Casa da Imprensa em 29 de março de 1974 teve o escritor e jornalista José Jorge Letria como um dos coordenadores. O lendário Coliseu dos Recreios, com lotação esgotada – e do lado de fora uma multidão que não conseguiu ingresso – recebeu o I Encontro da Canção Portuguesa. No palco, Letria, também destacado cantor de resistência, se juntou a nomes como Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes, Fernando Tordo, Manuel Freire, Zeca Afonso e muitos outros dos principais músicos que continuavam em Portugal lutando contra o regime.
O show por pouco não aconteceu, diante da imensa pressão dos órgãos de censura e repressão do regime. “Até as dez e pouco da noite, nós estávamos discutindo com o diretor-geral de espetáculos, que dizia que era melhor para nós e para o Estado que não fizéssemos o concerto porque ia colocar muita gente contra o regime”, recorda Letria. Mas, nos bastidores, os artistas decidiram não recuar em respeito ao público. E a enorme quantidade de pessoas dentro e fora do Coliseu sinalizou que qualquer ação repressiva poderia virar um banho de sangue, algo que o regime certamente não desejava protagonizar. Na plateia da sala de espetáculos estavam diversos militares que comandaram o golpe, bem como agentes infiltrados da máquina de repressão do governo.
O público promoveu uma apoteose cantando em uníssono Grândola, Vila Morena, “o que quer dizer que a música já tinha sido apropriada pelo povo, mesmo antes do 25 de Abril”, lembrou António Figueira Mendes, político ligado à vila de Grândola. A mesma percepção de dois dos futuros líderes do levante, Otelo Saraiva e Vasco Lourenço, que também estavam na plateia.
O canto ecoou “já depois da 1 hora da manhã, para uma Lisboa cheia de polícias a cavalo, de carros de água e de agentes com pastores alemães pela trela. […] Todos sentíamos que algo de decisivo estava prestes a acontecer, mas ignorávamos como, quando e onde”, escreveu Letria em seu livro E Tudo Era Possível: Retrato de Juventude com Abril em Fundo.
Embora persistisse o desejo de Otelo por Venham Mais Cinco, a escolha de Grândola, Vila Morena como segunda senha da Revolução dos Cravos foi algo quase natural diante do que se viu no Coliseu, além do fato de não estar censurada. Mesmo assim, surgiram versões diferentes sobre quem decidiu por ela.
Pode ter sido o capitão Carlos de Almada Contreiras, depois de ouvir do jornalista, diplomata e escritor Álvaro Guerra – importante elo civil do MFA – o mesmo argumento utilizado pelo jornalista João Paulo Diniz na escolha da primeira senha, que a escolha de Otelo chamaria atenção imediata dos censores por estar proibida. A conversa entre Contreiras e Guerra se deu debaixo do elevador de Santa Justa e o militar decidiu pela canção que virou hino da Revolução dos Cravos e símbolo das lutas democráticas portuguesas que vieram depois.
Outra versão dá como certa que a escolha partiu do jornalista Carlos Albino, em razão da sua ligação com o programa Limite e da sua participação direta na montagem da gravação que foi transmitida. Albino iniciou sua delicada missão no fim da manhã do dia 24 de abril. Como o exemplar da rádio estava trancado pelos censores, ele comprou outro antes de encontrar Manuel Tomaz para realizarem a montagem do conteúdo extra para transmitir a senha. Depois, levou seus poemas à apreciação do censor, que aprovou sem restrições.
O outro produtor e titular da locução do programa era o moçambicano Teodomiro Leite de Vasconcelos, de folga naquele dia e sem qualquer noção do que estava acontecendo. Mesmo assim, Tomaz o convocou para gravar os poemas. Ainda era necessário arranjar uma explicação para o locutor substituto Paulo Coelho e o operador de som José Videira a respeito do conteúdo extra que seria inserido naquela noite.
Foi dito que era um conteúdo extra de poesias de Albino porque uns amigos italianos dele iriam embora no dia seguinte bem cedo, queriam levar amostras do trabalho do amigo e poderiam gravar diretamente do rádio. Entretanto, só teriam oportunidade à 00h20 e por pouco tempo. Não se sabe se por obediência – Tomaz era o outro produtor do programa – ou desinteresse ninguém contestou.
Ficou estabelecido pelos militares do MFA que a segunda senha seria composta pela transmissão dos quatro primeiros versos da canção lidos pelo locutor, a música inteira os mesmos quatro primeiros versos repetidos no final.
Animados com a oportunidade e sem prejuízo ao combinado, Albino e Tomaz incluíram na sequência os poemas Geografia e Revolução Solar, (ambos de Albino) e a música Coro da Primavera, também de Zeca Afonso, que estava censurada. O trecho extra durou 11 minutos. “Assenta como uma luva, que se lixe”, foi a resposta que Leite de Vasconcelos ouviu de Tomaz quando alertou – no momento da gravação – que aquela música estava proibida.
O censor entrou esbaforido no estúdio perguntando quem tinha autorizado aqueles poemas. Albino apresentou os documentos que o próprio homem havia assinado, um recibo do vexame. Enquanto tratavam daquela questão, as tropas rebeldes iniciavam a ocupação de locais estratégicos de Lisboa – aeroporto da Portela, o Banco de Portugal, diversos veículos de comunicação e instalações do comando militar.
O hino Mesmo tendo sido utilizada como segunda senha da revolução, a canção Grândola, Vila Morena terminou virando uma espécie de hino da Revolução dos Cravos e se mantém presente como um ícone. É possível que seu formato sem qualquer instrumentação – apenas vozes acompanhadas por passos arrastados sobre um solo de brita (gravados fora do estúdio) – tenha sensibilizado de forma especial as pessoas naquele momento histórico, guardando-a no subconsciente da sociedade portuguesa como um grito de liberdade. É uma música com enorme poder de mobilização e que se vale do arrastar de pés como uma espécie de marcha marcial, como um convite para ir adiante.
Sua gravação foi realizada no Château d’Hérouville, nos arredores de Paris, cujo estúdio tinha uma qualidade técnica excepcional. Tanto que naquele período era muito utilizado por gente do porte de David Bowie, Elton John e Pink Floyd, dentre outros grandes nomes da música popular mundial.
As emissoras de rádio Três estações tiveram grande protagonismo nas comunicações da Revolução dos Cravos.
Rádio Peninsular Divulgou a primeira senha – a canção E Depois do Adeus –, era vinculada aos Emissores Associados de Lisboa e encerrou suas atividades. No local está instalado agora o escritório de advocacia Dantas Rodrigues & Associados, que mantém a cabine do estúdio “religiosamente” na forma original. “Ainda ecoam os valores de liberdade, de integridade e de respeito pelos direitos humanos”, afirma o advogado Joaquim Dantas Rodrigues, um dos sócios da empresa, quando faz referência ao espaço hoje histórico que resolveu preservar. Com o tempo, a região virou ponto de destaque da parte modernista de Lisboa.
Rádio Renascença Divulgou a segunda senha – a canção Grândola, Vila Morena – e continua funcionando atrelada ao sistema de comunicação da Igreja católica, instalada agora nos números 8-12 da Estrada da Buraca.
Rádio Clube Português Divulgou os primeiros comunicados do MFA e passou a utilizar o lema “Emissora da Liberdade”. Foi uma das várias emissoras nacionalizadas pelo governo em dezembro de 1975, com a criação da Radiodifusão Portuguesa, Empresa Pública (RDP). A partir daí passou por várias idas e vindas – mudou de nome, foi privatizada, voltou ao velho nome, até encerrar suas atividades. Hoje, há uma Rádio Clube Português operando em Newark (EUA), transmitindo uma programação de música portuguesa destinada às comunidades de emigrantes lusitanos. Sob o lema “Somos Portugal, somos a voz das comunidades”, a emissora se diz “responsável por levar Portugal aos portugueses espalhados pelo mundo”.
Epílogo O sucesso na derrubada da ditadura resgatou o prestígio das Forças Armadas junto à população portuguesa. A Revolução dos Cravos instituiu a democracia em Portugal, libertou os presos políticos, encerrou o ciclo de guerras coloniais e abriu caminho para a independência das ex-colônias na África. Na sequência, a Assembleia Constituinte elaborou uma nova constituição democrática que entrou em vigor em 15 de abril de 1976. Desde então, o dia 25 de abril é comemorado como o Dia da Liberdade pelos portugueses e feriado nacional.
Não há qualquer dúvida a respeito do sopro de liberdade que a Revolução dos Cravos legou sobre Portugal, um país até ali soterrado por 48 anos de ditadura militar e civil e aprisionado à mente provinciana de António de Oliveira Salazar, que moldou o país como se fosse propriedade sua a ser tocada com métodos arcaicos como ele próprio.
Na manhã de 25 de abril o jornal República trouxe em letras garrafais na sua capa “As Forças Armadas tomaram o poder. Pelo povo e pelas suas liberdades”. No rodapé, cobrindo toda a extensão da mesma página, cercada por um retângulo de linha vermelha, uma grande novidade em letras maiúsculas: “Este jornal não foi revisado por qualquer comissão de censura”. Naquele mesmo dia, o fotógrafo Carlos Gil registrou a imagem de um soldado exibindo o jornal nas ruas de Lisboa.
Os dois homens fortes da ditadura deposta, o presidente do Conselho de Ministros Marcelo Caetano e o figurativo presidente da República Américo Tomás, tiveram a concordância e proteção dos militares do MFA para escaparem da fúria popular e deixarem Portugal. Eles foram retirados em segurança de Lisboa para a ilha da Madeira na noite de 25 de abril de 1974, enquanto a população em êxtase festejava os novos ares de liberdade. Permaneceram em prisão domiciliar no Palácio de São Lourenço, em Funchal, onde não sofreram qualquer hostilidade.
Caetano Chegou a agradecer por isso – momentos finais a salvo da ira popular e alternativa de fuga – ao general António de Spínola, a quem entregou o poder. Há dúvidas se essa passagem de comando foi constitucional. “Com os militares na rua, o sistema constitucional do regime, que o prof. Caetano ensinava na universidade, doutamente comentava e afectava respeitar, ruíra num minuto e, pior ainda, tinha sido ele o primeiro, e o único, a reduzir a lei ao seu arbítrio. Sozinho, sem consulta ao presidente da República, ao Conselho de Estado ou sequer ao Governo (para não falar na Assembleia Nacional), decidira ‘transmitir’ o poder a Spínola. Nada na Constituição o autorizava a isso. Pelo contrário, a concorrência do presidente da República era indispensável. Nem as circunstâncias permitiam que o presidente do Conselho sem ouvir ninguém dissolvesse o regime, como efectivamente dissolveu, e até certo ponto legitimasse a sucessão de um general em revolta. Marcelo alegou que não conseguira falar com o Presidente ou reunir o Governo”, anotou o escritor e analista político Vasco Pulido Valente no artigo Marcelo Caetano A queda e o exílio, publicado no jornal Público (17.08.06).
Na verdade, a situação tensa do cerco ao quartel onde estava Marcelo Caetano parece ter presenteado Spínola com a oportunidade, pois o MFA havia pensado em entregar a Presidência da República ao brigadeiro Francisco da Costa Gomes, que recusou no primeiro momento, mas terminou sucedendo Spínola em seguida. O mesmo Spínola que demorou pouco – menos de cinco meses – no cargo, e meses depois tentou dar um golpe de Estado para retomar o poder. Terminou também exilado no Brasil, depois de uma fuga espetaculosa para a Espanha e um primeiro exílio na Suíça, de onde foi expulso por realizar atividades políticas relacionadas com seu próprio (e novo) projeto ditatorial.
Em 20 de maio de 1974, Américo Tomás e Marcelo Caetano finalmente embarcaram para o exílio no Brasil – primeiro país a reconhecer o novo governo português – na companhia de diversos colaboradores. Os dois ficaram inicialmente instalados no Hotel Hilton São Paulo e algumas semanas depois foram morar no Rio de Janeiro. Por despacho do então presidente Ramalho Eanes, Tomás conseguiu voltar a viver em Portugal, onde faleceu. Caetano permaneceu no Brasil, onde morreu seis anos depois.
Despachar as duas principais figuras do deposto Estado Novo para um exílio distante tinha suas motivações. A mais óbvia, evitar que a presença de ambos em território português mantivesse acesa a chama da ditadura e de um possível retorno ao poder do velho regime, mesmo que isso fosse pouquíssimo provável em razão do posicionamento reinante na sociedade. A mais estratégica, impedir qualquer movimento de caça às bruxas.
A Revolução dos Cravos jamais desaguou em unidade. Além da divisão considerável entre militares radicais e moderados, que discordavam a respeito dos próximos passos, os partidos políticos se colaram ao seu rescaldo, cada qual defendendo seus interesses, visões, capitalizações e sem nenhuma intenção de promover uma grande conciliação pelo interesse nacional.
A ditadura estava deposta. Um sonho de quase cinco décadas fora alcançado. A revolução era uma grande conquista coletiva. Tudo isso soava perfeito para um discurso de conformidade, pois era cômodo manter a sensação de que o 25 de Abril se bastava em si mesmo, embora houvesse um gigantesco trabalho de reconstrução pela frente a exigir aliança e coesão.
Também não havia interesse por parte das forças políticas agora dominantes de promover julgamentos que reabririam feridas dolorosas e trariam à luz questões delicadas demais como os porões da ditadura e da guerra africana, a descolonização por vir e o colaboracionismo do MFA, Spínola e até setores da esquerda com o Estado Novo. Assim, manter os dois antigos líderes a boa distância era caminho seguro para o mundo político levar adiante sua intenção de promover uma silenciosa absolvição coletiva, sob pretexto de garantir a democracia que acabara de nascer.
Alheio a tudo que acabara de acontecer, Spínola teve um papel deplorável no momento de libertar os presos políticos, inclusive acenando com uma sobrevida para a já dissolvida – por ele mesmo – PIDE/DGS.
Nos meses seguintes, tentou garantir poderes absolutos e terminou obrigado a renunciar. Costa Gomes finalmente assumiu a Presidência da República e sua primeira missão foi administrar interesses às vezes inconciliáveis de tantas partes. Por ser um militar defensor da paz, de perfil civilista a ponto de reduzir o uso do próprio uniforme a cerimônias onde o traje era indispensável, conseguiu impedir radicalizações e até uma possível guerra civil. Por isso, é considerado um dos maiores avalistas da atual democracia portuguesa.
*Todos os militares foram citados com as patentes que detinham nos momentos em que os fatos ocorreram. Alguns passaram à reserva com patentes superiores.
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Ouça aqui
E Depois do Adeus https://www.youtube.com/watch?v=jthlDhHpblo
Grândola, Vila Morena https://www.youtube.com/watch?v=gaLWqy4e7ls&t=50s
Venham Mais Cinco https://www.youtube.com/watch?v=JHXAPtCNH8w&t=4s