Divulgação/Netflix
Decepções e encantamentos
- Heraldo Palmeira
GIRAMUNDO VIU Best Sellers – A Última Turnê (2021) é uma homenagem e um sopro delicado sobre a importância da palavra (bem) impressa. No catálogo da Netflix somente até segunda-feira (29 de julho), o filme escrito por Anthony Grieco e dirigido por Lina Roessler nos leva para o deslumbrante mundo da literatura e do negócio dos livros impressos, que seguem bem vivos apesar das novidades tecnológicas e das muitas vozes que previam o seu fim.
Lucy Stanbridge (ótimo desempenho da atriz norte-americana Aubrey Plaza) herdou a editora do pai e tem sua competência profissional questionada em razão da situação pré-falimentar da empresa. Sem grandes nomes na lista de autores sob contrato ou alternativas comerciais viáveis no catálogo de títulos disponíveis, ela se pergunta se é possível “ressuscitar algum morto” e descobre que ainda tem o direito de publicação de mais uma obra do escritor Harris Shaw (atuação preciosa do lendário ator inglês Michael Caine).
O escritor é um bêbado com fama de maluco, recluso em seu casarão num condado nos arredores de Nova York desde que ficou viúvo, onde vive completamente alheio à realidade na companhia de um gato. Sua única obra, publicada há quase 50 anos, colocou a editora e seu fundador numa posição de destaque no mercado editorial.
Nesse hiato desde a primeira publicação teve tempo de sobra para escrever um segundo livro, pelo qual até já recebera um bom adiantamento financeiro. Mas conseguiu ficar completamente sem dinheiro e na iminência de ter a hipoteca da casa executada pelo banco.
Uma cláusula esquecida no velho contrato é bastante clara: “Não haverá edições nem revisões no rascunho enviado pelo autor”. Mas há uma compensação: “Em troca, o autor deve promover o livro como a editora decidir”.
Antissocial convicto e sem intenção de sair de casa para qualquer coisa, quando cobrado a respeito do contrato é veemente ao dizer que o mundo não precisa de nada novo vindo dele. A herdeira da empresa é irredutível e, sem saída, o velho escritor impõe suas condições para cair na estrada: que alguém cuide de Hemmy, o gato, e que sempre haja ao alcance da mão uma garrafa de Johnnie Walker Black Label, charutos White Wolf e amendoins salgados, com casca. Jamais vai levantar antes do meio-dia e não concederá entrevistas. Pelo menos, aceita utilizar seu próprio carro.
E assim começa uma viagem num clássico sedã Jaguar verde-musgo com direção do lado direito – mais inglês impossível! –, com o escritor sentado no banco traseiro e sua editora ao volante. A turnê de divulgação tem início por um circuito de bares frequentados por jovens. Durante as apresentações o autor adota bullshit (besteira) como palavra de ordem para traduzir seu desânimo e espantar fantasmas de vida inteira, além de várias artimanhas para sabotar os eventos de divulgação do novo livro.
Best Sellers – A Última Turnê tem a oportunidade de remoer os conflitos entre arte, comércio e celebridade, a partir das posturas intransigentes de um escritor forjado em tempos analógicos que se vê entrando nas águas turvas e sensacionalistas das redes sociais.
O filme não dispensa a oportunidade de alfinetar a futilidade reinante, escritores de best sellers e o público muito mais interessado no bochincho das redes do que nos seus fatos geradores. É exemplar quando alguém comenta que sabia que Shaw havia urinado num livro – as imagens da cena “bombaram” –, mas não que ele havia escrito um.
A trama é amparada numa relação complexa que vai tentando se equilibrar nas decepções e encantamentos entre um velho autor bêbado e rebelde e sua jovem editora compenetrada no objetivo empresarial que se impôs, ambos buscando salvação para suas urgências – ela, salvar a empresa; ele, não perder a casa hipotecada. Ao fim, acabam vivendo uma experiência transformadora.
A partir dessa convivência que termina ganhando ares de uma relação pai-filha, o filme tenta tranquilizar quem teme que ninguém mais se importe com a palavra escrita, já que àquela altura o livro em lançamento está conseguindo manter unidas gerações à deriva.
Filmes que abordam o mundo literário e a personalidade complexa dos escritores conseguem encantar porque transitam no ambiente da mais nobre forma de expressão do pensamento. E ficam mais instigantes quando a instabilidade emocional dos envolvidos lança uma pitada de incerteza sobre o desfecho da trama.
A mesma incerteza de desfecho pode transitar à vontade entre ficção e realidade. Basta pensar nos “especialistas em fim de mundo” apressados em decretar que a leitura em telinhas digitais faria desaparecer o formato de tinta sobre papel encadernado, consagrado pelo inventor alemão Johannes Gutenberg por volta de 1439 – uma modernização das experiências realizadas pelo inventor chinês Bi Sheng a partir de 1040. Ou lembrar que o próprio Michael Caine anunciou que este trabalho marcaria sua aposentadoria, mas já participou de mais dois filmes – tomara que venham outros.
Veja o trailer https://www.youtube.com/watch?v=KE8FxGr1IeA