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Defeito amado
- Heraldo Palmeira e Kalunga Mello Neves
Reconhecer os próprios defeitos é uma mistura de grandeza e desprendimento com um certo tom de segurança? Um passo além seria aprender a amar o que não é virtude – um defeito –, para encarar a vida com mais leveza?
Dos meus defeitos, qual o que eu amo mais? Talvez não seja mesmo uma pergunta comum, como também não é comum desenvolver amor por defeitos. E daí?
Eu me olho no espelho disposto a me contemplar estabelecendo um diálogo mudo, porém repleto de cumplicidade entre meus dois eu. Um é aquele a se despir lentamente, talvez revelando o que eu poderia ter sido, mas não fui por uma série de questões morais ou de princípios mesmo. Ou terei disfarçado alguma covardia como questão moral ou de princípios? O outro é o que está na minha frente, que se mostra tal como sou atualmente: velho, conservado, de bem com a vida, incrédulo politicamente, amante inveterado dos meus. Realizado em plenitude? É óbvio que nenhum dos dois está. Você, por acaso, arrisca dizer que está? – fique à vontade, mas não prometo acreditar.
O chuveiro, à minha espera, que espere. Tenho ainda que trocar ideias comigo. Sei que minhas perguntas têm aguardado ansiosas minhas respostas. E como iludir a mim mesmo? Conseguirei? Duvido muito. “Melhor ser sincero”, com certeza me dirá o sabonete, o xampu vai concordar, os meus botões pendurados no cabide também.
Estendo a mão e confiro a temperatura da água. Acendo a luz de LED para que a penumbra torne aqueles dois eu mais sombrios. Logo me vem o primeiro questionamento: “Dos seus defeitos, qual o que você mais ama?”. Tenho vontade de rir. Peço um tempo para me lembrar de todos. Impossível. De alguns deles, até consigo. É pouco. É muita coisa acumulada ao longo de uma vida.
Já estou bastante familiarizado com minha insegurança diante de qualquer tipo de pressão. Agir nestas condições me deixa totalmente desestabilizado. Certo complexo de inferioridade me atormentou bastante quando jovem. Depois passou um pouco, acho que envelheceu e perdeu a força. “Mas, qual defeito você ama mais?”, ouço a pergunta ser feita de novo, de maneira mais incisiva. “E você, qual?”, devolvo a pergunta tentando ganhar tempo. “Perguntei primeiro”, ouço sem demora, um tom já meio impaciente. Compreensível. Não é simples conversar com os próprios botões.
Respiro fundo, me olho nos olhos – não vou negar, aproveitando que o vapor começa a embaçar o espelho –, esboço um sorriso amigável e quase imposto a voz para soltar aquele eu que está sendo inquirido: “Meu defeito que mais amo é esta vontade danada de agradar a todo mundo. Traz alegria, traz decepção, momentos de euforia ilusória, de tristeza passageira, mas nos dá a oportunidade de conhecermos melhor as pessoas e até a nós mesmos. Talvez eu me sinta confortavelmente seguro e entre iguais quando estou com crianças e cachorros. Tá bom, pode ser mais simples estar entre eles por alguma dominância que facilita. Talvez haja até uma certa comodidade minha… Pelo menos estou sendo sincero”.
A luz apagou sozinha e um estranho silêncio toma conta do banheiro, quebrado apenas pelo chiado da água morna caindo do chuveiro e escorrendo em meu corpo. Eu me ponho a pensar em tudo que acabei de dizer. O sabonete deslizando entre as mãos me traz a certeza de que havia alguém até mais ensaboado ali, que aproveitou o ambiente embaçado pelo vapor, escorregou para o lado, apagou a luz e se foi sem sequer dar boa-noite.
O meu outro eu já não estava mais comigo. Sumiu sorrateiro quando ouviu minha resposta, talvez amedrontado com sua vez de responder. Continua, como eu, inseguro diante de qualquer tipo de pressão. Ainda mais na hora de reconhecer os próprios defeitos e dizer qual deles mais ama. Não é tão simples. Por isso, convenhamos: sair de fininho nem sempre é covardia, pode ser uma saída menos dolorosa. Quem pode definir com segurança que a fuga carrega questões morais e de princípios ou apenas o instinto de sobrevivência? Defeitos amados? Perguntas!
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural | KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante