Myshoun/Slovensko/Pixabay
Dores digitais
- Heraldo Palmeira
A expressão “redes sociais” é uma espécie de conceito que define um dos maiores fenômenos registrados pela humanidade, o mais próximo de unanimidade que conhecemos. Afinal, está em toda parte o tempo inteiro. Não é uma instituição, não tem endereço, é uma espécie de “entidade” amorfa cujo funcionamento está nas mãos de meia dúzia de empresas de tecnologia sem qualquer acordo de corresponsabilidade jurídico-empresarial. Tem um poder difícil de mensurar, é um prodígio que desafia qualquer lógica e consegue, de forma única, operar o bem e o mal até os extremos.
O livro 1984, lançado pelo escritor britânico George Orwell em junho de 1949 e considerado um dos mais influentes do século 20, assustou o mundo com o personagem Big Brother (Grande Irmão) vigiando todas as pessoas utilizando principalmente telas de TV e repetindo frases de propaganda do Partido Interno como mantra: “O Grande Irmão zela por ti”; “O Grande Irmão está te observando”. Era mesmo ficção científica?
O texto expõe uma distopia futurista com uma pesada crítica ao totalitarismo e à manipulação da verdade. Como aquele futuro ainda não havia chegado, o livro causou polêmica e inspirou filmes, minissérie, quadrinhos e ópera. E bastaram 20 anos para a serpente sair do ovo em 1969.
Talvez o retrato mais nítido da globalização, as redes sociais não permitem mais que o mundo seja imaginado sem elas controlando atividades profissionais, comerciais, informativas, de utilidade pública e recreativas. E tudo na palma da mão dia e noite. Sem limites, sem freios, sem fronteiras.
Uma espécie de materialização do sistema antecipado por Orwell em seu livro perturbador, as redes sociais estão profundamente entranhadas em todas as classes econômicas nos quatro cantos do planeta, como ferramentas onipresentes, imprescindíveis e viciantes, carregando virtudes e pecados.
Em qualquer idioma é difícil enfrentar o cotidiano sem elas. Exatamente por isso a serpente virou um monstro cada vez mais incontrolável, que vende a “bondade” de facilitar a vida das pessoas enquanto alavanca negócios bilionários de big techs que já não disfarçam suas intenções controladoras.
O lado escuro desse cenário onde ninguém quer jogar luz esconde duas realidades igualmente devastadoras para os interesses coletivos: a desinformação criminosa que criou o fenômeno das narrativas e fake news, e o aumento alarmante de doenças cada vez mais associadas a uma vida submissa a dispositivos eletrônicos – que alguns especialistas já tratam como epidemia, inclusive no campo do adoecimento mental.
Os holofotes mais poderosos são sempre direcionados à perspectiva de que a tecnologia é sinônimo de modernidade, uma abordagem sedutora para conquistar uma sociedade que jamais é alertada sobre os perigos que lhe rondam – desinformação, manipulação, empobrecimento intelectual e afetivo, adoecimento… – e sequer faz ideia da devastação emocional dos pacientes que lotam os consultórios psiquiátricos.
Mesmo diante de uma realidade cada vez mais indisfarçável, qualquer movimento no sentido de discutir regulamentação legal da internet é logo politizado e descaracterizado como censura às liberdades individuais. Um discurso com óbvio apoio das big techs, que torcem o nariz a qualquer movimento que atrapalhe o funcionamento do que elas implementaram como terra de ninguém onde pode rolar tudo que for lucrativo. Enquanto isso, seguem ignorando o trânsito livre de violência, crimes financeiros, pedofilia, deep web e outras aberrações.
Outro ponto delicado passa pela obtenção de dados pessoais dos usuários, que, tratados por algoritmos poderosíssimos e cada vez mais complexos, mapeiam o comportamento da sociedade, capturam ou definem tendências, constroem consensos e decisões totalmente manipulados, estabelecem novos hábitos de consumo e, como esperado, geram grandes negócios globais meticulosamente planejados. Para a sociedade ficou decidido que basta a falsa impressão de estar completamente up-to-date com todas as quinquilharias tecnológicas. Na distribuição de dividendos sobra esse “bônus” para os descolados de almanaque.
Um novo holofote foi acesso sobre o setor em outubro de 2022, quando o cada vez mais controvertido bilionário Elon Musk comprou o Twitter. O primeiro impacto veio com as cifras do negócio, US$ 44 bilhões (R$ 241,1 bilhões) – cerca de US$ 13 bilhões (R$ 71,2 bilhões) financiados por Barclays, Bank of America e Morgan Stanley.
No meio das tensões que foram brotando já no momento da aquisição, o jornal The New York Times escreveu que Musk surgia como “um ator novo e caótico no palco da política global. Embora muitos executivos bilionários gostem de tuitar a sua opinião sobre assuntos mundiais, nenhum deles chega perto da influência e da capacidade de Musk de causar problemas”.
O bilionário trocou o nome da empresa para “X”, explicando que comprou o negócio para garantir liberdade de expressão e recolocar no mercado a X, sua antiga empresa, vendida em 1999 ao PayPal – que desistiu da continuidade da empresa e negociou o direito de uso do nome. Segundo Musk, esse nome é mais adequado a um aplicativo “tudo em um”, inclusive como plataforma de pagamentos digitais.
A luz amarela acendeu desde que ele implementou uma série de mudanças como redução de custos, demissões – que alcançaram mais de 70% dos empregados –, além de alterar, de forma inesperada e confusa, diversas regras de administração do cotidiano da empresa e do conteúdo da rede, com enorme pressão sobre os funcionários que restaram. Outra medida controversa foi o fechamento do capital. Depois enfrentou enorme queda no faturamento quando grandes anunciantes se afastaram, em razão dos flagrantes desrespeitos aos padrões de transparência do mercado publicitário.
Um ano depois da aquisição o quadro era revelador: documentos da própria companhia indicavam que seu valor de mercado despencara para US$ 19 bilhões (R$ 104,1 bilhões), uma queda abissal de 56,8%. Talvez um resultado direto do fato de a empresa ir sendo transformada numa espécie de aparato político e de comunicação voltado aos interesses comerciais e pessoais de um Musk obcecado por suas próprias convicções.
Na ânsia de se manter em evidência para buscar um protagonismo que parece escapar entre os dedos, Musk iniciou uma escalada de desavenças com governos de diversos países [Austrália, Bolívia, Brasil, Estados Unidos (Estado de Delaware) e Ucrânia, além da União Europeia], repetindo um modus operandi que começa a contaminar seus negócios: afrontar legislações, desqualificar e atacar autoridades sempre que seus interesses são contrariados. Além disso, mantém ligações espalhafatosas com nações onde democracia e liberdades individuais não são exatamente artigos populares.
Nesses imbróglios criados pelo empresário, é assustador como se materializa a irracionalidade que as redes sociais construíram em pouco tempo: a intolerância baseada na desinformação. É impressionante a quantidade de pessoas se posicionando contra ou a favor de forma apaixonada, mas sem qualquer conhecimento dos acontecimentos.
Na sua cruzada em busca de “independência” e não regulamentação da internet, Musk terminou realimentando a questão com a urgência que ela exige, e demonstrando que, mais do que nunca, algo precisa ser feito. Afinal, pouquíssimos como ele podem se dar ao luxo de procurar outro planeta para viver.
História Embora tenha se transformado no maior meio de comunicação mundial, com mais de 5 bilhões de usuários, a internet surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos, em plena Guerra Fria. Sua gestação ocorreu no ambiente da Advanced Reserch Projects Agency (ARPA), agência de pesquisas do Departamento de Defesa americano, com o objetivo de interligar laboratórios de pesquisas e transmitir dados militares sigilosos.
Ali surgiu a primeira rede de computadores, denominada ArpaNet, e considerada a “mãe da internet”. Sua primeira conexão se deu em 29 de outubro de 1969, ligando um computador da Universidade da Califórnia (UCLA) com outro da Universidade de Stanford. A primeira mensagem enviada foi a palavra “LOGIN”.
Na verdade, era impossível prever aonde chegariam aqueles primeiros serviços embrionários e rudimentares com características de socialização virtual, mas estava pronto o ambiente para a proliferação das redes sociais, que já estão quase saindo da meia-idade e entrando na velhice.
O primeiro movimento mais claro se deu em 1969, com a fundação da CompuServe em Columbus, Ohio. Por meio de conexão dial-up em âmbito internacional, a empresa popularizou a troca de figuras e criou o formato GIF.
A partir de 1995 os serviços vão se tornando mais específicos. The Globe era voltado para a conectividade entre pessoas com interesses comuns. Classmates reunia estudantes de diversas escolas americanas, permitindo acesso a anuários das décadas de 1920 a 1980, montagem de perfis dos usuários e lista de contatos – algo muito similar ao que temos hoje.
Em 1996 apareceu o Six Degrees, o primeiro serviço a receber a denominação de social network (rede social). Chegou oferecendo recursos muito inovadores, além de lista de contatos e perfil detalhado dos usuários, incluindo pormenores como escolaridade. Ainda pecava pela falta de suporte para fotos e conteúdos audiovisuais e, mesmo com as restrições comuns à internet da época, chegou a reunir 3,5 milhões de usuários. A empresa foi vendida, passou por atualizações e funciona ainda hoje, o que lhe garante a posição de rede social mais antiga em atividade.
O Friendster surgiu em 2002 na Califórnia como uma revolução. Depois de juntar 3 milhões de usuários, despertou o interesse do Google e uma proposta de compra de US$ 30 milhões (R$ 166,2 milhões). Os executivos da empresa imaginaram que ela valeria bem mais em pouco tempo e recusaram a oferta milionária. A rede sumiu logo depois porque o servidor não suportou o tráfego dos seus usuários e a concorrência ganhou força.
No mesmo ano apareceu o MySpace, com novidades como personalização das páginas pelos próprios usuários, música, fotos e um blog com permissão de atualizações (pelos usuários). O acesso gratuito às obras de diversos artistas impulsionou a rede a tal ponto que, em 2006, a plataforma contava com cem milhões de usuários.
Com a proposta completamente diferente de conectar contatos profissionais, o LinkedIn chegou em 2003. Foi o início de sites de relacionamento segmentados. Conta hoje com mais de 350 milhões de usuários e está presente em mais de 200 países como a maior rede social profissional em atividade.
O Orkut surgiu em 2004 e se tornou uma síntese do conceito de rede social. Criada por iniciativa privada de um engenheiro do Google, focava no mercado dos EUA, mas ganhou popularidade em países emergentes. Com a possibilidade de perfis, comunidades e álbuns de fotos, virou uma febre e terminou comprado pelo Google, que implementou diversas melhorias como bate-papo e feed de notícias.
O Facebook nasceu naquele mesmo ano, durante o boom da Internet 2.0. Começou como uma rede para uso interno na Universidade de Harvard, depois aberta para outras universidades. Diante da expansão da plataforma e da repercussão, foi liberada para qualquer pessoa maior de 13 anos. Considerada a maior rede social do mundo, oferece uma gama enorme de serviços para seus 2,7 bilhões de usuários.
O Twitter apareceu em 2006 com um novo conceito: no formato de microblog, permitia mensagens limitadas a 140 caracteres e logo se transformou no queridinho dos serviços de notícias, blogueiros e celebridades. Com esse microssistema instalado, acolhia assuntos profissionais, informativos e pessoais para consumo rápido, em razão da limitação de caracteres – depois dobrada. Passou por muitas melhorias e hoje ultrapassou 550 milhões de usuários. Vendido em 2023, espantou o famoso passarinho azul da logomarca e teve seu nome trocado para “X”.
O mundo conheceu o WhatsApp a partir de 2009 como ferramenta exclusiva para celulares – depois expandida para computadores. Desenvolvida como opção às mensagens SMS, foi comprada pelo Facebook em 2014. Depois de inúmeras atualizações tecnológicas virou febre mundial. Presente em 180 países, simplificou, estabeleceu e barateou de forma definitiva o processo de comunicação sem fronteira, e conta mais de 2 bilhões de usuários.
O Instagram surgiu em 2010 como rede específica para postagem de fotos. Tornou tudo muito divertido ao disponibilizar efeitos e filtros, além de permitir interações e seguir perfis de usuários com curtidas e comentários. Dois anos depois foi comprado pelo Facebook e recebeu novas funcionalidades. Sucesso mundial, conta mais de 2 bilhões de usuários.
O Telegram apareceu em 2013 na Rússia, para concorrer com o WhatsApp oferecendo serviços semelhantes e regras mais frouxas. Tentou ganhar mercado navegando nos ambientes de radicalismo político em diversos pontos do planeta. Depois de divergências com o governo russo, transferiu suas instalações para o Oriente Médio. Terminou identificado com o movimento negacionista, teve crescimento pontual durante a pandemia de Covid-19 e estacionou em 700 milhões de usuários.
O TikTok surgiu em 2014 na China, oferecendo recursos para publicação e edição de todos os tipos de vídeo. Suas características similares e a concorrência direta obrigaram o Instagram a disponibilizar novas funcionalidades. A rede chinesa ultrapassou 1 bilhão de adeptos, adotou a monetização de usuários criadores de conteúdo como grande trunfo comercial e vem avançando como ferramenta de marketing utilizada para campanhas de grandes empresas, com foco nas experiências dos consumidores.
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