Por Heraldo Palmeira
Los Angeles
Nova York
São Paulo
Lisboa
Londres
Fase da Lua
.
.
21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA E agora?

DWilliam/Pixabay

E agora?

  • Heraldo Palmeira

Todos os ataques que o jogador brasileiro Vinicius Junior vem sofrendo – agressões raciais diretas e coletivas em dez rodadas de La Liga – tornaram-se ainda mais graves no último jogo Real Madrid x Valencia. E a repercussão internacional, conquistada unicamente pela reação indignada dele, parece ter sido um coice de mula na cara dos racistas e dos lenientes que vinham insistindo em colocar panos quentes em tamanha aberração.

Ficou muito evidente que instituições e personalidades que poderiam ter tomado providências ao primeiro sinal – governo espanhol, Real Federação Espanhola de Futebol, LaLiga, Real Madrid, dirigentes, técnicos, jogadores, imprensa, entidades supostamente representativas e torcidas – só começaram a repudiar claramente as agressões depois da repercussão internacional. A síntese está na posição de Javier Tebas, o controvertido costa-riquenho que preside LaLiga desde 2013, que se viu obrigado a pedir desculpas públicas ao jogador depois de atacá-lo pelas redes sociais.

Apesar da situação escandalosa transmitida ao mundo a partir do ambiente futebolístico da Espanha, as providências continuam tíbias e paira uma impressão de oportunismo em muitas vozes que agora se levantam em apoio ao jogador. O máximo que se tem notícia, até aqui, é uma suposta união de governo espanhol, Federação e LaLiga para promover uma campanha contra o racismo. Campanha?! A esta altura do “campeonato”? A palavra correta deveria ser “punição”. Rigorosa!

Para agir não precisa ir muito longe nem buscar ineditismo. Basta olhar para o Reino Unido e a Premier League, a mais organizada de todas as ligas. Ela surgiu como parte do conjunto de providências contra uma escalada de violência crescente ocorrida na década 1980, quando o futebol inglês vivia o ápice do hooliganismo – fenômeno social relacionado a grupos de torcedores arruaceiros e violentos que promoviam atos de vandalismo por onde passavam, inclusive em outros países da Europa onde os times ingleses fossem jogar.

A gota d’água foi a tragédia ocorrida em 29 de maio de 1985, quando Liverpool e Juventus entraram em campo no estádio Heysel, em Bruxelas (Bélgica), para a disputa da final da Liga dos Campeões da Europa (atual Champions League). Pouco antes da partida, os hooligans do Liverpool resolveram atacar os tifosi da Juventus, que entraram em pânico e tentaram fugir. Muita gente foi pisoteada e um muro caiu, deixando um rastro de 39 mortos e mais de 600 feridos. Por incrível que pareça, o jogo foi disputado em seguida e os italianos venceram por 1×0.

A tragédia espalhou uma poderosa onda de inconformismo pelo continente, a ponto de a UEFA tomar uma das medidas mais duras já registradas no esporte: puniu coletivamente o futebol inglês – já que os hoolingans não eram exclusividade do Liverpool. Apenas 4 dias depois, suspendeu todos os times ingleses de qualquer competição europeia por 5 temporadas.

Foi o bastante para o governo da então primeira-ministra Margaret Thatcher, apoiando a decisão, participar de um processo de completa reformulação do futebol do Reino Unido. “Temos que limpar o jogo deste hooliganismo em casa e talvez possamos jogar no exterior novamente”, ela disse à época. Surgiram medidas rígidas para identificar e banir os hooligans dos jogos – os punidos ficaram obrigados a se apresentar às autoridades meia hora antes dos jogos, permanecendo nos locais determinados até meia hora depois do encerramento das partidas, cabendo condenações e cadeia aos faltosos ou reincidentes.

Em 15 de abril de 1989, uma tragédia transversal ainda maior – resultado de erros primários dos organizadores e da polícia – causou o impacto final para que o Reino Unido mudasse completamente a face do seu futebol: o Desastre de Hillsborough, que se transformou numa das maiores catástrofes da história do futebol (link abaixo) e deixou 97 mortos e mais de 700 feridos.

Teve início uma verdadeira cruzada para culpar a torcida do Liverpool – evidências contra a polícia foram alteradas, provas foram omitidas, mais de 150 depoimentos modificados e a própria primeira-ministra ficou sob suspeita de conivência. Surfando na tragédia alheia, o tabloide The Sun endossou veementemente a tese leviana das autoridades. Com a manchete “A verdade”, o jornal afirmou que torcedores urinaram nos policiais, roubaram os mortos e agrediram os médicos. Nada era verdadeiro e até hoje esse diário e a própria Margaret Thatcher são odiados na cidade de Liverpool. Somente em 2012 o governo britânico pediu desculpas públicas, e em 2015 foi a vez do chefe de polícia da época, David Duckenfield, finalmente assumir a culpa pela tragédia.

O Relatório Taylor, resultado do inquérito que apurou o desastre, foi a base para grandes mudanças. Estádios foram reformados e todos os lugares viraram cadeiras individuais, pondo fim aos setores mais baratos onde a torcida ficava em pé, enquanto os próprios clubes passaram a fazer a segurança interna (dos estádios) em dias de jogos. O passo seguinte foi a formação, pelos clubes, da Premier League, que organiza em diversas divisões, os melhores, mais competitivos e mais rentáveis campeonatos nacionais do mundo, transmitidos para 190 países. Esse conjunto de medidas foi um ponto de virada que mudou para sempre o negócio do futebol pelo mundo.

Os ataques a Vinicius Junior podem motivar outro grande movimento de mudança. Uma punição exemplar ao futebol espanhol pode ser capaz de sufocar esse racismo explícito nas arquibancadas e servir de exemplo para o resto do mundo. Vândalos continuarão existindo, mas não têm mais espaço para infernizar as arquibancadas. O mesmo precisa acontecer com racistas.

Algo que também impressiona é o silêncio da FIFA. Mas, a bem da verdade, a quem essa postura realmente surpreende? Afinal, a entidade parece muito mais interessada em zelar pelos seus interesses comerciais do que gastar energia em temas espinhosos.

De volta à Espanha, parece que todos esqueceram um episódio de 2021, quando o jogador francês Mouctar Diakhaby sofreu ofensas racistas do adversário Juan Cala, do Cádiz – o juiz da partida David Jiménez registrou textualmente na súmula da partida a agressão e os termos utilizados pelo agressor. Depois de alguns minutos de confusão, o time do Valencia decidiu se retirar de campo em protesto. Não demorou no vestiário, em razão da ameaça de perder os pontos da partida. Diakhaby declarou não ter condições emocionais de retornar ao jogo, foi substituído e seu time perdeu por 2×1. O jogo aconteceu sem torcida, em razão das restrições da pandemia.

Agora, o francês fez questão de manifestar apoio a Vinicius Junior, mas teve uma atitude firme na quinta (25), antes do jogo do seu time contra o Mallorca: recusou-se a formar no grupo dos dois times e árbitros para posar atrás de uma faixa contra o racismo, uma das ações da atual campanha da LaLiga. Podemos pensar que o jogador deve ter sentido no ar um cheiro de hipocrisia, já que seu caso foi arquivado “por falta de provas”.

Infelizmente, Vini Jr. não foi o primeiro e nem será o último ser humano a sofrer discriminação pelos mais diversos motivos – ainda nos tempos de Flamengo já sofria ofensas. Estamos falando de um problema profundo. O racismo é atávico nos países colonizadores. Sem contar outras questões de ódio que independem da cor da pele, inclusive na Espanha – ainda está presente na memória o ódio dos diversos movimentos separatistas dentro do país, cuja visão mais violenta atendia pela sigla ETA (Euskadi Ta Askatasuna), que significa Pátria Basca e Liberdade em basco, uma organização nacionalista que ganhou perfil paramilitar e evoluiu para a violência armada, o terrorismo baseado em atentados urbanos, assassinatos, sequestros, extorsões e ameaças. Segundo o jornal El País, até anunciar o próprio fim, o grupo deixou um rastro de 853 mortos, 79 sequestrados e 6.389 feridos.

É oportuno lembrar que a Europa tem em sua formação populacional diversos povos diferentes, que não se furtam a lançar mão de uma xenofobia adormecida, mas sempre pronta a aflorar em momentos de crises mais agudas no continente.

A escravidão vem de tempos remotos da humanidade e a História registra diversos momentos dolorosos desse flagelo. Num período mais recente, encontramos a Idade Média, onde a escravização de povos subjugados pelo poderio militar de colonizadores europeus segue ressoando na civilização moderna como ferida não cicatrizada e borra moral que ainda alimenta preconceitos e discriminações. Sob a égide pomposa de “As Grandes Navegações”, “Era dos Descobrimentos” ou “Expansão Marítima”, portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses se lançaram ao desconhecido planetário em busca de poder e riqueza a qualquer preço.

Uma empreitada construída com massacres e domínio de povos nativos e, em seguida, africanos escravizados para trabalhar no desenvolvimento econômico das colônias. Em nome das conquistas, tudo foi sendo relativizado como “normal”, inclusive pelas bênçãos da Igreja de Roma, muitas vezes sócia das expedições pelo interesse em expandir o cristianismo espalhando seus jesuítas e ávida por se apossar de porções privilegiadas de terra em todos os lugares. Nem mesmo a modernização do mundo e a ampliação do alcance da educação foram capazes de impedir que as gerações seguintes aceitassem essa distorção como herança positiva.

O padre Fábio de Melo levanta pontos importantes, a partir do episódio de Vini Jr.: “Imagine o que passam as pessoas pretas que estão nos subempregos, enxergadas por uma tradição escravocrata vergonhosa, que ainda gera uma forma de pensar e de agir. Racismo é um derivado do equívoco antropológico que faz pensar que um ser humano é superior ao outro. E que a cor da pele é um indicativo da superioridade ou inferioridade”.

Qual é a surpresa quando tomamos conhecimento que distintas senhoras moradoras de condomínios de luxo da cidade de São Paulo criaram pelas redes sociais uma infame lista “Não Contratar”, onde classificam profissionais de serviços domésticos por um festival de preconceitos e irregularidades criminosas para impedir a recolocação deles no mercado de trabalho? O critério é o equívoco antropológico da superioridade citada pelo padre. E a certeza arrogante de que a posição socioeconômica privilegiada garante prerrogativas e impunidade ilimitadas.

A internet está repleta de vídeos que muitos acreditam conter o verdadeiro motivo do ódio espanhol contra Vinicius Junior: uma sequência de lances espetaculares com dribles, assistências e gols, em que ele vai deixando um rastro de devastação em adversários de diversos times com jogadas de habilidade superlativa e beleza arrebatadora.

Além do exemplo inglês baseado em medidas drásticas, alguns mecanismos são eficientes para combater o racismo no futebol: empresas patrocinadoras estabelecerem cláusulas firmes para desembolso ou rescisão de contratos, penalização rigorosa de pessoas físicas, clubes, dirigentes, federações e ligas.

No caso de Vinicius Junior, há uma dor acessória: os torcedores identificados na agressão e já banidos dos estádios da LaLiga têm entre 18 e 21 anos. Enquanto isso, a Real Federação Espanhola de Futebol abrandou a punição – que já era branda – aplicada ao Valencia. Nenhuma surpresa! E agora?

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

©