
Divulgação/Sony Pictures
Enfim, o Oscar
- Heraldo Palmeira
A contundência do filme Ainda Estou Aqui resgata um pedaço doloroso e fundamental da memória brasileira
GIRAMUNDO VIU Um sopro de orgulho paira neste momento sobre a arte brasileira. A mesma arte que gerou tantos momentos extraordinários na música, literatura, artes plásticas e cinema, agora se mostra novamente muito além das nossas fronteiras com o filme Ainda Estou Aqui. Afinal, pela primeira vez na história, um Oscar é brasileiro legítimo, na categoria Melhor Filme Internacional (antiga Melhor Filme Estrangeiro), criada para dar visibilidade a produções estrangeiras e faladas em línguas não inglesas.
A trajetória internacional de Ainda Estou Aqui é mesmo de encher de orgulho a enxovalhada cultura brasileira. Depois de ser recebido calorosamente em diversos países, conquistou prêmios importantes antes de chegar à cerimônia do Oscar.
O filme tem um poder impressionante de arrastar o telespectador para dentro de uma história que poderia acontecer com qualquer família naqueles anos sombrios que dominaram o Brasil, ao registrar o sequestro, morte e ocultação do corpo (nunca localizado) do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Beyrodt Paiva, e toda a infâmia imposta a sua mulher e filhos – todos crianças – pelo regime militar.
Sem apresentar uma única cena explícita de violência, choca pela crueldade das ações covardes dos órgãos de repressão da ditadura. Não há como não sentir revolta com a forma que o regime destrói uma família digna e feliz, invadido sua casa e mantendo durante dias um terror silencioso e apavorante, inclusive pela tortura psicológica da falta de informações a respeito do pai que foi levado embora definitivamente e da mãe que ficou presa por 12 dias.
Como acessório desprezível, a prisão de uma filha de 15 anos: “Eu fui revistada de alto a baixo, em todos os sentidos, uma coisa desagradabilíssima. Fui revistada por um homem inclusive. […] Ele pegou no meu corpo inteirinho, em todos os cantos possíveis. Eu estava ainda encapuzada”, falou pela primeira vez depois de 40 anos Eliana Paiva, aquela menina presa em 1971 junto com os pais.
A realismo assustador do filme cala fundo e é bom que seja assim, que sirva como alerta. O jornalista e cartunista do jornal Folha de S.Paulo Cláudio de Oliveira, amigo do Giramundo, nos relatou sua experiência:
Fui ver com a família o filme Ainda Estou Aqui. Adorei. Para mim, o filme é uma denúncia contundente e eficaz do regime ditatorial que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. E as duas Fernandas, Montenegro e Torres, mãe e filha, estão magistrais. Chamou-me a atenção o “Gaspa”, citado várias vezes no filme. Trata-se de Fernando Gasparian, amigo da família de Rubens e Eunice Paiva e fundador do jornal Opinião, importante semanário que circulou de 1972 a 1977. Ele foi também proprietário da Editora Paz e Terra e nas décadas de 1950 e 1960 era filiado ao PSB. Em 1986, foi eleito deputado constituinte pelo PMDB. Recomendo o Ainda Estou Aqui aos meus amigos. Uma página que espero virada da nossa história, mas que não pode ser esquecida.
Ganhar um Oscar nunca foi tarefa fácil e o sistema da premiação de Hollywood não é tão simples de compreender. Pouco importa, pois a sonhada estatueta já está na estante do diretor Walter Salles e é extensiva ao elenco e toda equipe do filme, especialmente à magistral Fernanda Torres que conseguiu reviver Eunice Paiva à perfeição. Além de tudo, o prêmio também poderá animar e solidificar a indústria cinematográfica brasileira no mercado global. “Parabéns, Waltinho. Parabéns ao cinema brasileiro! Parabéns aos artistas brasileiros”, festejou Marcelo Rubens Paiva, autor do livro Ainda Estou Aqui que deu origem ao filme, e personagem do drama vivenciado pela família na vida real.
Houve certa frustração pelo fato de Fernanda Torres não ganhar o Oscar de Melhor Atriz, mas é preciso levar em conta que a Academia tem uma política de premiar jovens atores e atrizes – caso da ganhadora Mikey Madison (25 anos) – como forma de estreitar relações com as novas gerações e perpetuar a indústria. Pode ter se repetido agora o caso de Fernanda Montenegro, que perdeu a estatueta para Gwyneth Paltrow (então com 27 anos) em 1999.
Sim, Hollywood é uma indústria e tem seus princípios comerciais que, não raro, são colocados acima da excelência artística. Ou alguém consegue explicar o fato de o extraordinário ator argentino Ricardo Darín jamais ter sido premiado? É do jogo.
Também é do jogo muitas produções de autor terem sido premiadas este ano, talvez uma maneira de reabrir as portas para produções baratas e independentes que renovam o mercado. Foram elas que transformaram plataformas de streaming como Netflix e Amazon em verdadeiros gigantes do entretenimento, agora concorrentes diretas dos grandes estúdios.
Desde que foi lançado, Ainda Estou Aqui teve uma trajetória notável nos cinemas brasileiros. Segundo dados da Ancine, em seus primeiros 120 dias de exibição o filme já levou quase 5,1 milhões de pessoas às mais de 116 mil sessões realizadas, que chegaram a ocupar 960 salas simultaneamente. Todo esse movimento arrecadou quase R$ 105 milhões. É a terceira maior bilheteria de filmes nacionais desde 2018, atrás de Minha Mãe é uma Peça 3 (2018) e Nada a Perder (2019).
O Brasil no Oscar Quando foram anunciadas as indicações ao Oscar 2025 e Ainda Estou Aqui (categorias Melhor Filme e Melhor Filme Internacional) e Fernanda Torres (categoria Melhor Atriz) se tornaram concorrentes, surgiu na imprensa o nome da brasileira Luciana Arrighi como ganhadora da nossa primeira estatueta – em 1993, ela e o inglês Ian Whittaker dividiram o prêmio na categoria Melhor Direção de Arte (atualmente denominada Melhor Design de Produção) pelo filme inglês Retorno a Howards End.
Arrighi, que continua em plena atividade aos 85 anos, não é cidadã brasileira. Nasceu no Rio de Janeiro e foi embora com os pais aos dois anos de idade – o pai diplomata italiano e a mãe australiana. A nacionalidade do seu prêmio é creditada à Austrália, país onde ela viveu a infância e obteve cidadania.
A relação do Brasil com o Oscar é antiga: já são 22 indicações distribuídas em 12 categorias diferentes. Tudo teve início em 1945, quando Ary Barroso foi o primeiro compositor latino-americano indicado e concorreu ao prêmio de Melhor Canção Original com a música Rio de Janeiro, da trilha sonora do filme norte-americano Brazil.
Neste momento, está em curso um movimento da família do compositor Lupicínio Rodrigues para tentar incluir seu nome como indicado na mesma categoria de 1945, pois ele não foi creditado pela canção Se Acaso Você Chegasse utilizada na trilha sonora do filme Dançarina Loura, um musical com grande produção norte-americana. A ação já corre nos EUA e visa somente fazer esse registro reparador na história do Oscar.
Nossas participações 1945 Brazil | 1960 Orfeu Negro | 1963 O Pagador de Promessas | 1979 Raoni | 1982 El Salvador: Another Vietnam | 1986 O Beijo da Mulher Aranha | 1996 O Qu4trilho | 1998 O Que É Isso, Companheiro | 1999 Central do Brasil | 2001 Uma História de Futebol | 2004 Cidade de Deus | 2004 Gone Nutty | 2005 Diários de Motocicleta | 2011 Lixo Extraordinário | 2012 Rio | 2015 O Sal da Terra | 2016 O Menino e o Mundo | 2018 Me Chame pelo Seu Nome | 2018 Ferdinand | 2020 Democracia em Vertigem | 2022 Lead Me Home | 2025 Ainda Estou Aqui.
Nessa lista também estão incluídas coproduções brasileiras sem profissionais (brasileiros) diretamente indicados. Ganharam estatuetas em diferentes categorias os filmes Orfeu Negro, O Beijo da Mulher Aranha, Diários de Motocicleta, Me Chame pelo Seu Nome e Ainda Estou Aqui.
História O nome oficial da maior premiação do cinema mundial é Academy Award of Merity. Apenas em 1939 o apelido “Oscar” foi reconhecido e existem três versões para explicar esse batismo.
A mais popular dá conta que Margareth Herrick, secretária executiva da Academia, ao ver a estatueta pela primeira vez teria afirmado com admiração “Parece meu tio Oscar!”. Décadas depois, quando alguns historiadores resolveram investigar o assunto, descobriram que a moça tinha na verdade um primo com esse nome, mas a história já estava consagrada no meio cinematográfico.
Também se atribui a autoria ao jornalista Sidney Skolsky, primeiro a utilizar o termo na imprensa quando cobriu a cerimônia de 1934 para o New York Daily News. Entretanto, como ele frequentava os bastidores da Hollywood, é possível que apenas tenha reproduzido algo que já era corrente no ambiente da premiação.
Por fim, a atriz Bette Davis afirmava ter inventado o apelido, pois a estatueta lembrava o músico e ator Harmon Oscar Nelson, seu marido de 1932 a 1938.