Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Escadas da Penha

Alexandra Haynak/Pixabay

Escadas da Penha

  • Heraldo Palmeira

Era apenas uma Maria. Como tantas outras. Podia ter sido comum, nasceu quando o século 20 ainda era jovem, nem tinha feito 30 anos. A cidade era pequena, bem pequena. Talvez um fim de mundo, como quase todos os lugares eram fim de mundo naqueles tempos.

A diferença de outros rincões é que o dela estava a apenas 5 horas de um Rio de Janeiro republicano todo prosa e ainda impregnado pelas memórias imperiais recentes. A cidade que apresentaria a Maria o amor.

Mocinha, foi passear na capital do país a convite de uma amiga de colégio que tinha parentes lá. Viajaram com todas as vontades de conhecer tudo que era deslumbrante na fama da cidade. E Maria estava com o coraçãozinho apressado pois iria reencontrar Zuzu, o namoradinho transferido para o Rio por causa do serviço militar.

O amor foi oferecido de graça por quem não devia ter facilitado, não é certo se por impotência, negligência ou risco mal calculado. Nunca se soube se Zuzu estava de serviço, desinteressado ou brincou com a sorte quando mandou o amigo Gilberto ciceronear Maria e a amiga na cidade.

Religiosa, quis conhecer as escadas da Penha, talvez motivada pelo Penha que carregava depois do Maria no próprio nome. Tinha lido a respeito da história moldada na pedra e perpetuada pela memória oral da população, dupla como seu coração estava naquele momento.

A primeira versão dizia que em 1728 foi criada a Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Penha, que assumiu a propriedade da colina e mandou construir uma escadaria para facilitar o acesso dos fiéis à ermida – erguida pelo português Baltazar de Abreu Cardoso no topo do penhasco que fazia parte de sua enorme quinta. A outra, mais popular, dava conta que uma devota de posses, outra Maria (Barbosa), prometeu erguer a escada caso vencesse a dificuldade de dar à luz, graça alcançada em 1817 com o nascimento de um menino.

A obra foi realizada ferindo o penhasco para esculpir 365 degraus, um para cada dia do ano. O desgaste natural impôs a reforma total de 1913, quando a Irmandade determinou o alargamento e acrescentou 17 degraus – a atual configuração com 382.

O impacto que Maria sentiu diante do guia turístico inesperado foi imediatamente mútuo. Ele tornou-se em pouco tempo o amado, o sal da sua terra feminina que largou tudo e foi para o interior dela formar vida e família. O destino fez com que ela conhecesse o lamento dos viúvos aos 52 anos e jamais reabrisse o coração ao amor. Sabia-se inteira no que vivera até ali e assim permaneceu. Mandou erguer o jazigo na cidade natal onde, desejo definido, também voltaria ao pó ao seu lado.

Mudou da cidadezinha e de estado. Amparou a maturidade da filha, o desabrochar dos netos, o florescer dos bisnetos. Esteio de um monte de gente que o coração acolhedor ia transformando em família, formou uma legião de amigos, foi exemplo de fé, caridade, recato e coragem. Elevou-se como filha numa grande mãe do sincretismo.

Tá lá o valete

No meio das cartas

No jogo dos búzios

Tá lá no risco da pemba

No giro da pomba

No som do atabaque, tá lá

E tá no cigarro, no copo de cana

Na roda de samba, tá lá

O seu anjo de guarda chamou

Escadas da Penha

Até hoje quem chega ao Rio de Janeiro por terra, mar e ar enche os olhos com o imponente Santuário Mariano Arquidiocesano de Nossa Senhora da Penha de França e sua monumental escadaria que dá acesso à matriz, elevada à dignidade de basílica menor em 2016. O caminho de fé de tanta gente tem corrimões cobertos de fitas do Senhor do Bonfim, estandartes balançando ao vento e, acima de tudo, uma visão de 360 graus da beleza suspensa da cidade do Rio de Janeiro.

Maria era a tradução do segundo nome que carregava na certidão de nascimento. Penha significa “grande massa de rocha saliente e isolada, na encosta ou no dorso de uma serra”, conforme nos ensina o dicionário Houaiss. Ela estava caminhando para 97 anos e iria longe, caso não tivesse seus motivos para se encantar. Escalou a escada da vida lúcida, altiva, direta como sempre foi, com a palavra firme e certa na ponta da língua. Havia muitos degraus em que fez uma parada meritória. Orgulhava-se particularmente de ter sido uma grande professora e advogada brilhante. A palavra como dom, gostava de contar histórias e talvez nem tenha se dado conta de que escreveu uma daquelas tremendas.

Agora, deu de encantar estrelas. De vez em quando passa toda janota pelo meu céu.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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