Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Eu morri

Tumisu/Pixabay

Eu morri

  • Heraldo Palmeira

Renato desceu do táxi na esquina da rua Barata Ribeiro e caminhou cabisbaixo na calçada do pequeno trecho da rua Dona Adma Jafet em busca da entrada principal do Sírio-Libanês. A mente estava ocupada com uma miscelânea de dor, ansiedade, sensação de perda, impotência, dúvida… Parecia mais incomodado com a discordância familiar, que começava a tomar tons de cinza, algo incomum entre eles.

A família crescera nos anos 1960 no ambiente quatrocentão do Pacaembu, numa casa enorme e moderna com arquitetura de assinatura famosa. Encravada no alto de uma das colinas, estava no centro de um terreno que mantinha a vizinhança a uma distância prudente, com visão privilegiada, ampla e livre do bairro, o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho lá adiante.

O pai Renatão, descendente de ingleses, herdara e comandava o influente escritório familiar inaugurado pelo avô, dedicado ao comércio exterior. A mãe Maria Fernanda era descendente de dois barões do café estabelecidos na Alta Mogiana nos tempos do Império. Com reluzente currículo acadêmico na USP, era consultora respeitada em projetos governamentais e tinha grande envolvimento nas artes paulistanas. O casal fazia parte da vida cultural e social da pauliceia desvairada, das rodas elegantes e costumava receber em festas exclusivas e disputadas.

Embora não fizesse o menor esforço para tal e mantivesse um estilo low profile, Maria Fernanda era habitué das colunas sociais como Fê Penteado Ferraz. Foi cliente coberta de afagos por Dener e Clodovil nos tempos áureos das duas maisons e guardava a sete chaves a preferência pelo marido de Maria Stella Splendore, para evitar uma tragédia de tesouras no reino da alta costura nacional. Também costumava trair a ambos em suas visitas costumeiras a Paris, onde era recebida com sorrisos largos nos endereços mais exclusivos do mundinho da moda.

A família desfrutava de todos os confortos que dinheiro farto proporciona. A garagem era equipada com marcas internacionais famosas, por onde também passaram todos aqueles esportivos fora de série fabricados aqui – Adamo, Aurora, Bianco, Brasinca, Cobra, Farus, Hofstetter, Interlagos, Karmann Ghia, Lafer, Malzoni, Miúra, Puma, Santa Matilde, SP 2, Ventura… O casarão de Ilha Bela guardava um buggy Glaspac, para os deslocamentos e a curtição na ilha, e uma lancha italiana Riva Aquarama no píer. Sim, Renatão tinha paixão por brinquedos caros – uma queda especial por Porsches – e grana para bancar o gosto. Tantos carros deram início a uma coleção que seguia impecável e estacionada num galpão nos arredores de São Paulo, onde a Aquarama ganhou um recanto especial.

Renato, Fernando e Sílvia, nessa ordem de nascimento, eram de idades próximas e se davam muito bem. Cresceram em harmonia e sem conhecer a maioria das agruras que a vida reserva à maioria dos viventes. Escolas de elite, roupas de grife, viagens internacionais, suporte de empregados eram parte da realidade refinada em que viviam.

Renatinho foi o primeiro a chegar para a reunião com os médicos. Aceitou a água e o café oferecidos. Ali definiriam a assistência médica que seria adotada doravante para sua mãe, mantida sob sedação na UTI há alguns dias. Paciente do setor de oncologia, a metástase retirara perspectivas e esperanças.

Recostou-se na poltrona confortável, fechou os olhos e entrou na mesma nuvem de angústia que pairava há cerca de 60 dias, ocasião do diagnóstico e internação. Desde o início do período de sedação, ele se perguntava se o paciente conseguia registrar o que realmente sentia naquele estado. Como todo mundo, era levado a crer que a sedação interrompia o sofrimento. Mas essa era a perspectiva de quem estava acordado e consciente. Ninguém tinha comprovação de nada sobre a realidade de quem estava sedado.

Até concordava que podia estar exagerando e tentava encontrar respostas. Talvez fosse efeito do abalo emocional causado pela situação. Também podia ser resultado do pânico de tomar uma decisão entre vida e morte de alguém. Fosse o que fosse, não conseguia tirar aquela questão da mente.

Teve um pequeno sobressalto quando a porta se abriu e Fernando e Sílvia chegaram juntos. Ela mantinha postura dogmática de que o dom da vida é restrito a Deus e permanecia contrária à interrupção dos tratamentos paliativos. Renatinho estava angustiado porque sabia que o irmão não gostava de embates nem de contrariar a irmã, ainda mais numa situação inédita e tão delicada.

A equipe médica chegou em seguida e a conversa começou tensa, pois o diagnóstico apresentado apontava um quadro terminal. Palavra passada à família, ela quis falar primeiro e afirmou sem rodeios que, apesar de tudo, desejava manter a mãe viva, que se fizesse o que fosse preciso. Fernando, muito emocionado, disse que não gostaria de opinar e foi confortado pelo irmão, que puxou sua cabeça para o ombro e afagou o rosto lacrimejado.

Renatinho começou fazendo uma abordagem racional do estado da mãe apresentado pelos médicos e da validade de continuar. A irmã ficou inquieta, mas ele estava convicto de que concordar com ela significava prolongar o sofrimento de todos. Quando informou que autorizava a interrupção do tratamento paliativo, Silvia perdeu o controle e, aos gritos, disse que era uma autorização de assassinato.

A situação era complexa. Embora ainda vivo, Renatão sofria de demência há quase dez anos, vivia recolhido no casarão de sempre e repetia exultante que estava namorando Maria Fernanda, uma moça linda com quem ia se casar. Fernando manteve a posição de não opinar. Renatinho e a irmã diziam sim e não.

O chefe da equipe médica sugeriu que ficassem sozinhos para chegar a uma conclusão. Renatinho fez um sinal para que todos permanecessem na sala. Falou com brandura para a irmã que preferia uma decisão deles. Na impossibilidade, algo precisava ser levado em consideração. Retirou da pasta um documento que lhe havia sido entregue pelo advogado da família e pediu para o médico ler em voz alta.

O oncologista analisou o documento em silêncio. Depois, explicou que se tratava de um testamento vital, também denominado Diretivas Antecipadas de Vontade, onde o paciente determina quais procedimentos médicos deseja ou não ser submetido se acometido de doença grave e/ou terminal, caso também esteja incapacitado de tomar decisões. E passou à leitura:

“Eu, Maria Fernanda Prado Penteado Ferraz Cunningham, em pleno gozo da minha racionalidade e autonomia, informo a todos que, no caso de ser acometida por doença incurável e fora da possibilidade de reversão, os médicos e o hospital que estiverem me assistindo na ocasião ofereçam somente os cuidados paliativos disponíveis para diminuir ou cessar o meu sofrimento físico ou psíquico.

ACEITO a condição finita da vida e NÃO ACEITO qualquer ação ou intervenção extraordinária inútil, ou seja, qualquer ação médica pela qual os benefícios sejam nulos ou pequenos e não superem seus potenciais malefícios.

NÃO ACEITO que utilizem medidas terapêuticas inúteis para prolongar a minha vida de modo artificial, se estiver incapacitada para uma vida racional e autônoma.

NÃO ACEITO, estando nas condições de doente terminal ou incurável, ser reanimada no caso de parada cardíaca ou respiratória.

Neste ato, também nomeio Euclydes Evaristo de Santa Rosa Nabuco, advogado, como meu procurador de saúde para garantir que seja cumprido na íntegra este testamento vital que expressa minha vontade. No caso de seu impedimento por qualquer motivo, deverá ser substituído por meu filho Renato Smith Cunningham Jr.”

Para aumentar o valor jurídico do documento, Fê Penteado Ferraz tomou o cuidado de fazer o registro em cartório. Depois do local das assinaturas, inseriu uma frase da californiana Brittany Maynard, diagnosticada com câncer em estado terminal e que obteve o direito de não prolongar a própria vida: “Eu não quero morrer. Mas estou morrendo. E quero morrer segundo meus próprios termos”.

Renatinho explicou que a mãe preparara aquela declaração depois que a demência se instalou em Renatão e ela ficou muito abalada. Silvia explodiu novamente quando doutor Nabuco foi chamado e o médico informou que o documento não deixava dúvidas a respeito do desejo da paciente. Caberia à família determinar os passos seguintes para o devido cumprimento. Completamente descompensada, ela repetia frases religiosas e o santo nome de Deus. Também estava abalada pelo fato de não ter conhecimento daquela decisão da mãe e da escolha do irmão como procurador substituto.

Renato dirigiu-se à irmã com ternura:

– Há alguns dias, sonhei como nossa mãe. Estávamos num lugar muito calmo, parecia um bosque. Ela me olhou com ternura e disse: “Meu filho, eu morri e preciso ir!”.

Fernando segurou a mão do irmão e soltou o choro. Todos foram saindo silenciosamente, até que as luzes da sala vazia apagaram pela ação do sensor de movimento. Uma pequena réstia de luz se manteve num canto. Parecia resultado de uma fresta na cortina. Podia ser apenas a perspectiva de quem estava acordado e consciente.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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