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Feliz o quê?
- Heraldo Palmeira
Era meio de tarde nas duas ocasiões em que eu voltava para casa, depois de participar de reuniões gastronômicas distintas para dizimar o famoso “resto de ontem (R.O.)” em casas de amigos que promoveram grandes festas nas duas noites principais do fim de ano.
Com diferença exata de uma semana a cidade estava igualzinha, modorrenta, mal acordada das ressacas das noites de Natal e de Ano-Novo passadas em comilança, bebedeira, entusiasmo, fé, simpatias e crendices.
Talvez tentando mandar algum recado, a programação da engenharia de tráfego fechou para mim o mesmo sinal na esquina de um centro comercial instalado há anos na grande avenida da minha rota.
No amplo canteiro central arborizado que separa as seis pistas, um casal aproveitava a sombra espalhada sobre a grama para almoçar em pratos de isopor e talheres de plástico, com uma garrafa grande de um daqueles refrigerantes engarrafados numa mesma palavra: “tubaína”. Parecia haver outras miudezas comestíveis espalhadas ao redor, mas estavam meio encobertas. A cena sem festa era uma fresta escancarada separando duas grandes realidades do mundo: a dos que se acham e a dos que ninguém procura.
Pensei nas minhas duas noites passadas em fartas celebrações com familiares e amigos. Como se fosse pouco, ainda tive outras duas subfestas em louvor do R.O.
A luz vermelha parecia interminável, sem querer dar lugar à verde que limparia da minha vista a imagem desanimadora do homem e sua companheira almoçando tarde – talvez estivesse ali o mais pleno sentido de “almojanta” como única refeição do dia – e sem ninguém ao redor.
Ele nem tinha completado a maioridade quando encostou nos arredores do centro comercial e passou a “trabalhar” como flanelinha. Ganhava a vida dependendo de trocados por serviço algum que aprendeu a fingir prestar – o pedaço de pano amarelo sobre os ombros jamais entrou numa lata d’água ou afagou uma única lataria. Especializou-se em apenas “vigiar” as dezenas de carros que estacionavam ali no ir e vir de todos os dias, “autorizado” pelo colete ordinário adquirido numa loja de equipamentos para obras. “Autorização” que a condescendência coletiva prefere reconhecer a questionar, representada por aquele apetrecho amarfanhado sobre a surrada camiseta de campanha política de um corrupto profissional.
O centro comercial abrigava alguns points badalados da gastronomia da cidade. Embora enxergasse tudo à distância, o flanelinha estava acostumado a testemunhar reuniões ao redor das mesas chiques, tapinhas nas costas, beijinhos colunáveis, sorrisos ofuscantes fabricados em lentes de contato odontológicas, maledicências sussurradas… Pela falta de prática com essas reuniões, quase certo que nem desconfiava dos rasgos de falsidade que enfeitam a fina flor da sociedade redesenhada por agulhas e bisturis de procedimentos estéticos.
Ele via tudo pelo filtro das janelas e vidraças fechadas para prender o ar refrigerado em ambientes onde nunca seria bem-vindo. O máximo de aproximação se dava nos instantes em que estendia a mão em busca da sua esmola, balbuciando um “vigiado” sem sentido. O mesmo filtro que, em sentido inverso, podia maquiar como piquenique sua miséria na grama do canteiro.
Fiquei procurando onde inserir naquela cena todas as palavras bonitas servidas com as ceias de Natal e Ano-Novo. Não caberiam tantos votos de prosperidade, planos de fazer tudo diferente, abraços, tapinhas nas costas, palavras decoradas, sorrisos iluminados, beijinhos, sussurros maledicentes mal disfarçados, desavenças familiares revividas… Nem cogitei incluir o tilintar das taças, estava protegido por uma desculpa razoável: não se faria ouvir naquele meio de rua com os barulhos da vida urbana, carros e pessoas passando.
Lembrei de um post que recebi de uma amiga pelas redes sociais, onde aparecia uma foto de família de uma mulher festejando dois eletrodomésticos simples que acabara de ganhar como presentes de Natal nos anos 1970. Ela estava radiante, sorrisão espetacular ao lado de uma árvore com enfeites comuns. Hoje, a chatice do politicamente correto botaria água no chope da festa.
Lembrei que mais e mais pessoas reclamam que essas celebrações sociais ficaram muito chatas e consomem imensa energia na organização, pela quantidade de bugigangas “obrigatórias” do piso ao teto que o senhor mercado inventou para faturar. E ai de quem promover uma festa sem mostrar que pode tudo. Comidas, bebidas, doces, adereços, roupas, acessórios e toda sorte de frescuras têm que ostentar grifes previamente consagradas naquelas reuniões que o flanelinha enxerga pela vidraça.
Não posso reclamar das minhas festas. Foram alegres, pacíficas, em núcleo familiar reduzido e amigos escolhidos com esmero. Talvez resultado da maturidade que ensina o famoso “menos é mais”. Aquela coisa de um trazer uma garrafa de uísque pela metade, pois é o que tem disponível em casa, e a gente juntar com outra da casa que está pela metade e formar uma inteira. Duvido que alguém conseguisse fazer a gente rir tanto quanto aquele cara da meia garrafa!
O mundo anda chato, todos sentimos e dizemos isso cada vez mais. Talvez seja um bom momento para rever esses modelos cafonas de celebrar ostentando. Talvez seja um bom momento para pensar que uma parcela enorme da população da Terra jamais terá chance de acionar um interruptor e acender uma luz, abrir uma torneira e ter água quente ou fria, sequer fazer uma única e simples ligação telefônica na vida inteira. E você aí acreditando que estamos no melhor dos mundos, que a tecnologia mudou tudo!
Aquele flanelinha no gramado do canteiro central não me deixa mentir, como se fosse o estrondo de uma onda da ressaca marinha batendo nas pedras que me oferecem a falsa impressão de que tudo está bem porque as coisas estão bem para mim.
A buzina soou insistente atrás de mim avisando que o sinal abrira numa luz verde com cara de álibi perfeito para me livrar daquele flagrante. Feliz o que mesmo?
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural