Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Figurinhas repetidas

Julien Tromeur/Pixabay

Figurinhas repetidas

  • Hayton Rocha

Carnaval de 2058. Apago minha 100ª velinha e ainda me sinto disposto, tesão de seminarista, trabalhando e mentindo como nunca. Apenas uma dorzinha aqui na coluna lombar, fruto das travessuras com minha velha (lá vou eu criar problema, gratuitamente!) parceira de chuva, suor e sucos.

Não sei onde estava com a cabeça, por volta de 2024, quando voltei a trabalhar na mesma empresa onde passei uma primeira etapa de mais de quatro décadas ouvindo dizer que seria privatizada porque muda de rumo a cada quatro anos, sujeita-se a ingerência política, a regras da concorrência pública, não remunera tão bem seus funcionários, essas coisas.

Talvez tenha sido a curiosidade de experimentar tecnologias transformadoras como a Inteligência Artificial, que se impôs em definitivo sobre as relações humanas e de mercado. O metaverso, aliás, após uma aposta pesada de grandes corporações como centro de inovação e consumo, já se tornou arcaico, obsoleto. A vida como ela acontece, sempre.

Sim, houve um salto quântico nos modelos de negócios e nos processos de trabalho, mas nem tanta mudança assim no mosaico de almas, apesar de os cérebros poderem se conectar diretamente à nuvem de dados para transferência da memória ou troca de informações.

Como diria um antigo poeta carioca, falecido há mais de seis décadas (ele também estaria agora completando 100 anos), tenho visto o futuro repetir o passado, esse museu de grandes novidades.

Reencontrei uma figura com quem trabalhei na primeira etapa de minha vida profissional. Costumava protelar tarefas, pelo menos até a primeira reiteração, dizendo: “eu só tenho certeza de que algo que me pedem precisa mesmo ser feito quando me cobram”.

Há algumas semanas, quando reiterei uma encomenda pela terceira ou quarta vez, seu desabafo me fez refletir: “Calma aí! Tu sabes por que o Criador fez o mundo em sete dias? Porque não tinha registro de entrada e saída no serviço nem chefe perguntando se a merda já estava pronta!”

Quem permanece muito tempo numa mesma organização – no dizer de uns, falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo –, consegue listar sem dificuldade algumas figuras especiais. Eu mesmo guardo um time daquelas que se repetiram nas duas etapas do jogo.

A “Cara-de-Pau”, por exemplo, finge não escutar uma boa ideia oferecida por um subordinado para, logo em seguida, com alguns ajustes cosméticos, lançá-la em público, como se fosse “pai (ou mãe) da criança”.

A “Chata” é aquela que vive interrompendo teleconferências! Só faz comentários fora de contexto, desperta alguma compaixão no começo, mas, logo depois, rejeição geral e irrestrita.

A “Curiosa”, antes do “bom-dia”, remexe papéis (sim, eles continuam, inclusive o cheiro de tinta que inexplicavelmente ninguém lembrou de engarrafar!) nas mesas alheias e bisbilhota telinhas e telonas, convicta de que fofoca vestida de informação pode ser arma poderosa nos bastidores corporativos.

Já a “Entediante” se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia, incompreendida e subestimada por todos. Vive repetindo piadas sem graça, rindo não se sabe de quê.

A “Garganta” é de doer! Fala sem parar de si própria (o que já é péssimo) e dos outros (inaceitável!). Quem se enfeitiça com o som da própria voz parece interessante por alguns segundos, mas insuportável minutos depois.

E a “Gaveta”? Empurra tudo com a barriga para a próxima semana, sem o menor senso de oportunidade. Nunca se dá conta de que uma máquina lenta é até admissível, mas uma alma, nunca!

A “Inflexível”, então, não sabe perdoar aos outros (nem a si própria) pelos erros cometidos, nem é capaz de reconhecê-los. Dificilmente aceita um “não”, porque se diz determinada, perseverante etc. A teimosia em pessoa!

Quanto à “Medrosa”, avessa a qualquer novidade (só valoriza o que “sempre deu certo”), não quer saber de nada que mexa com sua insuportável rotina, mas se corrói de inveja quando alguém ousa e se dá bem.

Tem a “Petulante”, que sempre busca encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só enxerga os outros de cima para baixo, com um risinho de deboche para qualquer comentário mais simplório dos mortais.

E o que dizer da “Sincerona”?! Vê-se acima do bem e do mal por ser “franca demais”. E vomita tudo o que lhe vem à cabeça, despreocupada se atinge ou não aos outros com a acidez de suas convicções.

Há também a “Surda”. Não escuta nem aqueles que concordam com seus argumentos. Nem percebe que, mesmo obrigada a filtrar bobagens, se não souber ouvir, perderá por completo a capacidade de lidar com os outros…

Acordei aos sobressaltos. A vida eterna continua sendo um sonho instigante, um conceito atraente, apesar do álbum de figurinhas repetidas.

Pior, bem pior, deve ser não acordar nunca mais, não se queixar de nada, de ninguém. Nem saber das queixas feitas contra mim.

Melhor levantar e beber meu café que o dia promete.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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