Por Heraldo Palmeira
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24 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Fora de controle

Pexels/Pixabay

Fora de controle

  • Hayton Rocha

O dramaturgo e romancista Ariano Suassuna dizia ser contra as pessoas falarem mal das outras pela frente. “Eu acho uma falta de educação muito grande, não é? Falar mal pela frente constrange quem ouve e constrange quem fala. Não custa nada a gente esperar um pouco as pessoas darem as costas”. Dizia mais: “Eu minto! Vejam bem, não me levem a mal. Não gosto de quem mente para prejudicar os outros. Gosto de quem mente por amor à arte. O mentiroso lírico”.

Bem, o nome aqui não vem ao caso, mesmo porque um cidadão com quem trabalhei nos anos 1980 ainda é vivo e pode achar que estou distorcendo os fatos. Vou chamá-lo de Xaréu (peixe da cabeça grande, olhudo, de águas oceânicas) por causa do par de faróis de jipe que ele carrega sobre um bigode de para-choque.

Nascido em berço de prata, tinha em torno de 35 a 40 anos de idade quando o conheci. Nas horas vagas de bancário, praticava pesca submarina no litoral alagoano. Jactava-se de ter descoberto uma técnica para “hipnotizar” tubarões. Dizia até que tirou fotos acariciando um tubarão-azul de mais de três metros.

Um dia, Xaréu resolveu revelar como colocava tubarões em “transe” para serem apreciados por turistas, sem o estresse da captura. O primeiro passo para imobilizar o bichão era atraí-lo chacoalhando a água e usando sardinhas (a isca ficava numa caixa que permitia sentir o cheiro e até ver a comida, embora não pudesse ser mordida).

Quando o predador se aproximava, ele o induzia a um profundo relaxamento. Colocava as mãos numa certa posição, fazendo com que o animal pensasse que seus dedos eram pequenos peixes. “Provoco o bicho para me morder. Essa é a parte mais perigosa, porque se eu for muito rápido, ele vai embora, e se eu for devagar, ele abocanha”.

Contou que mergulhava protegido por uma roupa feita de um aço especial. Caso fosse mordido, os dentes não perfurariam o traje. “Houve até um caso em que um tubarão mais afoito ficou banguela”, pontuou.

Antes de morder, o animal abria o bocão, deixando a água entrar para obter oxigênio por meio das guelras. Em seguida, fechava as mandíbulas. “De boca fechada, eu conseguia imobilizar o bicho. Como não estava respirando, era fácil colocar a mão no nariz dele e fazer massagem”.

Depois de deixar o bichão “chapado de prazer”, retirava parasitas da pele. “Ele até ameaçava ir embora, mas percebia que havia carinho e respeito; por isso, ficava. Não tem quem não goste de um cafuné, né mesmo?”.

Como o tubarão não pode permanecer muito tempo parado e precisa estar constantemente em movimento para respirar, Xaréu disse que o conduzia à superfície e exibia para os turistas, de quem recebia polpudas gorjetas, inclusive em dólares.

“Pois muito bem”, diria Suassuna. Ao me ver meio cabreiro, desconfiado, Xaréu admitiu que não era possível aplicar a técnica em todos os predadores. Garantiu, porém, que nunca sofrera um acidente grave. “Às vezes, me vejo no meio de 20 tubarões e procuro descobrir quais são os mais confiantes. Quando acho, atraio um deles”.

É fato que Tubarão, do cineasta Steven Spielberg, lançado em 1975, fizera um tremendo sucesso no Cine São Luiz, em Maceió. No filme, um inesperado ataque sinaliza que a praia de uma pequena cidade americana teria virado o refeitório de um monstro que se alimenta de turistas. O prefeito ainda tenta esconder da mídia, mas o xerife local busca a ajuda de um pescador veterano para eliminar a besta-fera. A tarefa acaba sendo bem mais difícil do que se esperava.

Clarinete, chefe do setor em que trabalhávamos, não apostava um cruzeiro nas aventuras de Xaréu, mas, com o semblante sério, perguntou se aquela coragem toda vinha de criança. Ele nem pestanejou. Disse que desde os tempos de escoteiro, sempre que se via diante de animais furiosos, encarava-os com destemor para ter o controle absoluto da situação, “o que deixava os bichos desconfortáveis, por se sentirem desafiados ou ameaçados. E a maioria acabava fugindo”.

Se era verdade ou não, difícil saber, a esta altura. Sei que Xaréu, na época, ficou chateado porque a turma fez uma algazarra danada quando Clarinete, em seguida, começou a cantarolar uma canção que fazia muito sucesso no rádio: “Olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais”.

Soube que Xaréu, depois que se aposentou, andou oferecendo seus préstimos à prefeitura do Recife para resolver “um probleminha” no trecho que vai da praia do Pina, na Zona Sul, até a praia do Paiva, no Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana. Mas as negociações não evoluíram. “É por isso que a coisa anda fora de controle por lá”, ele teria dito. Liricamente, imagino.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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