Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

Futebol de segunda linha

Adriano Gadini/Pixabay

Futebol de segunda linha

  • Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli

O futebol mundial vive ciclicamente momentos em que determinados países e federações nacionais decidem bancar projetos suntuosos e megalômanos que visam estabelecer rupturas e novos parâmetros no mundo da bola. De uma hora para outra – surpresa! – surge do nada uma liga que, de acordo com a mídia esportiva, vai assombrar o planeta! A Arábia Saudita é a protagonista da vez, a nova meca do esporte bretão. Mas será que vai dar liga mesmo? Será que aprendeu com as aventuras dos nefelibatas e dos picaretas que já tentaram antes?

Poucos lembram da Liga Pirata Colombiana, talvez o primeiro exemplo em nível mundial. Em 1946, um empresário chamado Alfonso Senior, presidente do Milionários, tradicional time de Bogotá, decidiu se unir a outros ricaços – dirigentes de equipes de Medellín, Cali e Barranquilla e formar a Dimayor (División Mayor), rompendo com a Federação Colombiana e com a FIFA, com o objetivo de montar o “melhor campeonato nacional do mundo”.

Desrespeitando regras internacionais, como a necessidade de “comprar os passes” dos jogadores estrangeiros, indenizando financeiramente seus clubes anteriores e alterando orientações da FIFA em relação a campeonatos – a Liga Pirata permitia que cada time contratasse e utilizasse quantos estrangeiros quisesse por jogo – ela foi disputada entre 1946 e 1951.

Atraídos pelos altos salários, muitos craques sul-americanos, na maioria argentinos como os fabulosos Alfredo Di Stefano e Adolfo Pedernera, migraram para a Dimayor contratados pelo Millionarios. A “máquina” do River Plate, melhor time do continente nos anos 1940, foi desfeita em função do êxodo de muitos atletas para a Colômbia. O brasileiro Heleno de Freitas, ídolo do Botafogo e Vasco e um dos mais famosos bad boys do futebol brasileiro, brilhou no Junior Barranquilla. E até jogadores europeus foram contratados.

Pressionada pela FIFA, a Federação Colombiana interveio e a farra e a gastança acabaram. Os clubes tiveram que se desfazer de seus craques, devolvendo-os a seus times de origem ou negociando seus passes para, com o dinheiro obtido, ressarcir os prejudicados. Chegava ao fim o “El Dorado”, com o futebol colombiano empobrecido e os times endividados. Algo que perdurou praticamente até o fim da década de 1980, quando o narcotráfico tomou para si os principais clubes do país e injetou muito dinheiro neles, período em que a Colômbia se destacou no futebol internacional mas não deixou saudades.

Outra experiência que mexeu com o esporte em todo o mundo foi a criação da NASL (North American Soccer League), em 1968. O projeto visava à popularização do futebol nos Estados Unidos. Apesar do início hesitante, a partir de 1974, com a transmissão ao vivo das partidas pela TV para todo o país e a contratação de inúmeras estrelas veteranas do futebol internacional, a liga estourou. Sucesso total de público, os estádios lotavam para ver craques em fim de carreira e isso rolou até a primeira metade dos anos 1980.

Os norte-americanos passaram a conviver com os brasileiros Pelé, Carlos Alberto, os ingleses Bobby Moore, Hurst, Banks e Francis, os alemães Müller e Beckenbauer, os holandeses Cruyff e Neeskens, o italiano Chinaglia, o peruano Cubillas, o português Eusébio, o polonês Deyna e muitos outros craques. O time alviverde do New York Cosmos, maior campeão – investimento da Warner Bros que contava com o Rei Pelé como grande âncora – era conhecido em todo o mundo. O sucesso inicial da NASL foi tão grande que a FIFA “fechava os olhos” para algumas “novações” adotadas naquela liga: para se adaptar à cultura de haver “winners and losers”. Não havia empates, mas uma decisão por “shootouts”, nos moldes do hóquei: em vez de bater pênalti, o jogador saía a 32m de distância da trave com a bola dominada, para tentar fazer o gol na saída do goleiro!

A recessão econômica vivida pelos EUA no início da década de 1980 e o amadorismo dos dirigentes dos principais times terminaram levando a liga (e os times) à falência, até que a criação da MSL (Major Soccer League) nos anos 1990 resgatou o interesse pelo esporte no país. A Copa 1994 foi um ponto importante para a retomada, que também registrou a aposta dos clubes na formação de jogadores nas bases e do crescimento da seleção nacional em competições internacionais. Agora, uma nova fase está aberta à chegada de estrelas internacionais, tendo Lionel Messi seu ponto mais reluzente. A volta do Mundial para o território norte-americano (dividindo a sede da Copa 2026 com Canadá e México) deverá ampliar ainda mais a presença do futebol no robusto calendário de eventos esportivos dos EUA.

Inspirados na MLS norte-americana, os japoneses criaram a J-League em 1992. A nova entidade assumiu as atividades da antiga liga – criada no pós-guerra – e adotou a mesma prática de oferecer contratos milionários a craques de diversas nacionalidades. A exemplo do papel de Pelé nos EUA, coube a Zico servir de grande âncora do fortalecimento do futebol no Japão, onde existe uma verdadeira idolatria ao jogador.

Apesar da inspiração norte-americana, os japoneses adotaram estratégia diferente. Eles não visavam resultados de curto prazo, mas a construção de um modelo próprio de jogo – e de negócio – que misturasse a disciplina dos europeus com a técnica e o improviso dos brasileiros, que eram paradigmas do futebol naquela época. Com essa visão, implementaram sua liga e contrataram alguns astros internacionais vitoriosos, principalmente do Brasil. Assim, depois de Zico, César Sampaio, Evair, Careca, Leonardo e Dunga desembarcaram do outro lado do mundo com a missão de desenvolver o futebol e conquistar novas gerações pelos fundamentos, técnicas do jogo e suas posturas profissionais e pessoais exemplares.

A química deu certo e desde 1998 o Japão participa ininterruptamente de Copas do Mundo, passando da fase de grupos em quatro oportunidades. De 1992 para cá, em oito disputas ganhou quatro vezes a Copa da Ásia de seleções nacionais. Seus principais times conquistaram oito títulos da Champions asiática, chegando uma vez ao vice-campeonato mundial de clubes (Kashima Antlers, em 2016, derrotado na prorrogação pelo Real Madrid, por 4×2).

A J-League é uma experiência vitoriosa, a segunda liga mais rica da Ásia, atrás apenas da SPL saudita. Mantém estádios lotados, equipes financeiramente bem estruturadas, jogos transmitidos para o mundo via internet desde 2016 e jogadores de destaque exportados para bons times europeus.

Outra liga que movimentou bastante o planeta da bola foi a Super Liga Chinesa. Fundada em 2001, seu primeiro torneio ocorreu em 2004, impulsionada pela primeira, irrelevante e até aqui única participação do país em uma Copa do Mundo (2002). O passar dos anos trouxe ao campeonato uma série de escândalos – corrupção, manipulação de resultados associada ao negócio das apostas –, levando o governo a intervir, prender e banir diversos dirigentes.

As medidas moralizadoras tiveram boa repercussão, o interesse do público aumentou e o governo decidiu realizar grandes investimentos no esporte, incentivando empresas estatais a patrocinar o negócio, com planos mirabolantes – sediar Copa do Mundo, Copa da Ásia, virar endereço fixo do Mundial de Clubes. Vieram contratações de jogadores e treinadores internacionais, nem sempre condizentes com os valores exorbitantes das transações. Três brasileiros são um exemplo claro dos exageros financeiros. Oscar foi a transferência mais cara da China, por € 60 milhões (R$ 318,6 milhões), assumindo também o posto de terceiro jogador mais bem pagos do mundo, atrás de Cristiano Ronaldo e Messi. Hulk custou € 55 milhões (R$ 318,6 milhões). Alex Teixeira foi comprado por inacreditáveis € 50 milhões (R$ 265,5 milhões).

Por algum tempo, a China foi um paraíso financeiro para nomes como os brasileiros Paulinho, Ramires e Renato Augusto, o colombiano Jackson Martinez, o marfinês Drogba, os argentinos Lavezzi, Mascherano e Conca, o francês Anelka e técnicos como os campeões mundiais Felipão e Marcelo Lippi. Além disso, o país incentivava a prática do futebol incluindo o esporte no currículo das escolas, exigindo que todos os times mantivessem uma cota (percentual) de atletas na categoria Sub-23 em seus elencos e proibindo que fossem utilizados goleiros estrangeiros.

O sonho de grandeza futebolística chinês tropeçou na falência de grandes empresas patrocinadoras – e a consequente desativação dos clubes mantidos por elas –, junto com a eclosão da epidemia de Covid-19. Os estragos foram do cancelamento de competições locais à enxurrada de ações judiciais de jogadores contra clubes, em razão da falta de pagamentos e outas obrigações contratuais. As estratégias saneadoras como redução e teto salariais afugentaram estrangeiros e teve início um processo de naturalização de jogadores, como meio de tentar (sem sucesso) a classificação da seleção à Copa do Catar. Diante da realidade, o governo retirou o futebol das suas prioridades e aumentou o esvaziamento da Superliga Chinesa.

O caso da Arábia Saudita é emblemático. Apesar da quantidade de dinheiro jamais vista em qualquer ambiente do futebol, o projeto não está livre de repetir outros fracassos retumbantes conhecidos. Por tudo que já se viu nas diversas tentativas anteriores que jamais abalaram a supremacia das ligas europeias e sul-americanas. E porque, no caso dos sauditas, os objetivos principais seriam mudar a péssima imagem internacional do país e sediar uma Copa do Mundo, um nítido desvio que transforma em mero detalhe o princípio esportivo do futebol.

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