Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

Futebol despedaçado

LunarSeaArt/Ruth Archer/Pixabay

Futebol despedaçado

  • Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli

A temporada 2023 do futebol brasileiro é digna de esquecimento. E nem com todo o espírito de boa vontade que chegou com o Natal dá para esperar luz no fim do túnel no curto prazo. A torcida – os gaiatos dizem que até os carecas – ficou de cabelos em pé. Num espetáculo de desgraça ampla separamos alguns atos dignos de nota:

1º Ato – Títulos O Fluminense ganhou a Libertadores com um time de refugos (veteranos dispensados por seus clubes anteriores) que deu liga – e agora anunciou Renato Augusto como reforço para 2024! Claro que esses jogadores merecem respeito pelas carreiras que construíram, mas, convenhamos… Em que país europeu de primeiro nível futebolístico uma equipe desta seria campeã de algo? O Palmeiras conseguiu ganhar o Brasileirão depois de desmontar seu meio-campo titular, manter um desenho tático manjado e não contar com alguns de seus melhores jogadores em muitos jogos. O São Paulo conquistou a Copa do Brasil com méritos, mas é um time apenas mediano. O Flamengo não conseguiu ganhar nada, mesmo com o elenco mais caro do país, graças a uma mescla de incompetência de dirigentes, técnicos e jogadores, sob aplausos de boa parte da mídia. Em alguns momentos, parecia que os caras não queriam ganhar nada mesmo. O Grêmio só sobreviveu bem porque tinha Luis Suárez, semiaposentado que agora vai curtir Miami e merecidamente aumentar a fortuna ao lado de Messi. O Atlético Mineiro depende ainda do incrível veterano Hulk. O Botafogo foi um surreal capítulo à parte, algo sobrenatural ocorrido com um time apenas mediano tratado como sensação que nunca foi.

2º Ato – Esquecimento Na sexta (29), o país sequer lembrou de lembrar o primeiro ano da morte de Pelé. Embora aqui em Pindorama muita gente se negue a enxergar o óbvio, para o resto do mundo aquele sujeito negro – que fez reis, rainhas e maracatus em geral se curvarem diante dele, mas não é um dos queridinhos do discurso politicamente correto – é sinônimo do futebol.

E que fique bem claro: é sinônimo “do” futebol e não “de” futebol, justamente rebatizado Rei do Futebol porque personalizou como ninguém esse esporte e redesenhou completamente seu conceito como fenômeno de massa. Por isso, dá vontade de rir quando “entendidos”, que jamais abriram um livro para conhecer as histórias que Pelé protagonizou, tentam comparar cruyffs, maradonas, messis e outros jogadores de futebol a uma entidade sobrenatural como ele. Ainda bem que Pelé não viveu o ano de 2023. Deus lhe foi amigo, poupando-o dos vexames e constrangimentos que esse ano da graça sem graça nenhuma nos ofereceu.

3º Ato – Chocolate O Mundial de Clubes, em todos os sentidos, parece ter sido o melhor resumo de onde estamos parados nas águas do futebol mundial.

Na semifinal contra o egípcio Al-Ahly, o Fluminense terminou vitorioso depois de converter um pênalti meio “Mandrake” e os atacantes adversários, “fominhas” de irritar, abusarem do direito de perder gols que ninguém perde.

A final começou antes de a bola rolar, com a pachecada embalada por uma vitória fajuta apontando fragilidades do Manchester City, representante europeu na decisão. E a discurseira idiota antecipava por onde os trintões e quarentões do Fluminense poderiam aproveitar as “vulnerabilidades” dos britânicos.

Sem sequer precisar pagar serviços de consultoria, dias antes do jogo o Fluminense teve o cenário antecipado graciosamente pelo jornal inglês The Telegraph. O jornalista Sam Wallace foi cristalino no texto desde o título: “Para ganhar a Copa do Mundo de Clubes, o Manchester City só precisa vencer uma escalação mais adequada ao Soccer Aid”.

O Soccer Aid é um jogo beneficente promovido pelo Unicef para arrecadar fundos para as crianças vítimas da aids. Nele, um time representa a Inglaterra e outro a Seleção do Resto do Mundo. Obviamente, muitos veteranos famosos participam da iniciativa. Claro que, ao invés de dar a devida atenção ao alerta, a arrogância do dinizismo se embriagou numa “mágoa” coletiva inventada pela mídia pacheca.

A matéria do jornal inglês era ainda mais generosa no alcance do seu aviso. Logo na abertura anunciava o óbvio: “Em sua primeira final de Mundial de Clubes, o Manchester City enfrenta um adversário improvável ao título: um time brasileiro com sete veteranos do futebol”. E na sequência anotava para não deixar qualquer dúvida: “O Fluminense, de Fernando Diniz, que tem abordagem baseada na posse de bola de Pep Guardiola, precisa agora decidir se seguirá esta crença na final, contra o time mais formidável do futebol mundial”.

Entretanto, nossos “analistas”, magoadíssimos, insistiram em ficar comparando o dinizismo aos conhecimentos estratégicos de Pep Guardiola, agora tricampeão mundial de clubes com Barcelona, Bayern de Munique e Manchester City. É o que dá colocar lado a lado o original consagrado e uma cópia pirata de feira do Paraguai.

O vexame começou com Marcelo, um dos “craques” semiaposentados citados nominalmente na matéria do Telegraph, quando nem havia passado o primeiro minuto do jogo. Foi mostrar todo seu talento na defesa e a bola terminou nas redes tricolores. E ainda tinha muito constrangimento pela frente.

Na verdade, a nossa mídia esportiva cada vez mais parcial retrata o espírito vira-lata que nos persegue. A narração dava conta do “brilhantismo defensivo” do Fluminense. Que o time demonstrou personalidade e coragem porque, mesmo perdendo por 4×0, não mudou o sistema de jogo. Como é que é? Qual a dificuldade de criticar a bagunça generalizada, essas peladas que compõem o futebol brasileiro atual e reconhecer, por conseguinte, que já não somos páreo para os europeus há muito tempo?

Que ninguém se engane, o Manchester City levou o jogo em ritmo de treino e não custa lembrar que não pisaram o campo as duas maiores estrelas dos azuis, Haaland e De Bruyne. Nem mesmo a revelação belga Doku. Como é que alguém pode ter imaginado que o time de Diniz teria alguma chance diante da máquina de Guardiola? Qual a dificuldade de compreender de uma vez por todas que a maioria dos nossos maiores times sequer conseguiria disputar dignamente a segunda divisão dos campeonatos da Espanha, Inglaterra e Alemanha?

Antes de a bola rolar, aqui na redação do Giramundo não havia dúvida em concordar que beirava o surrealismo imaginar uma vitória tricolor. E logo depois da patacoada de Marcelo, soou alto e bom som “vai ser goleada”. Que ninguém imagine torcida contra. Na verdade, muito antes de mídia, somos apenas olhos que insistem em não fugir da realidade.

Foi patético ouvir, durante a transmissão do jogo, elogios repetitivos e desmedidos do narrador ao tamanho da panturrilha (sim, isso mesmo!) do atacante inglês Jack Grealish, em vez de tratar do que realmente interessava, o atoleiro do futebol brasileiro ali representado por um Fluminense humilhado.

O epílogo da desgraça veio com o apito final. O City claramente tirou o pé do acelerador para “apenas” dar olé e o juiz evitou acréscimos para não ampliar a vergonha. Mas havia um Felipe Melo, sempre ele, para mostrar seus conhecidos dotes de mau perdedor – ou talvez mostrar que sua vida de esportista sênior poderá transcorrer em algum rinque caça-níquel. Só mesmo alguém como ele para, depois de levar um chocolate de 4×0 e 90 minutos de sufoco, tentar arrumar briga com o vencedor.

Como se fosse pouco, depois disso tudo o sacerdote do dinizismo serviu a cereja do bolo do seu nonsense. Com o tradicional revirar de olhos que quem parece possuído por alguma entidade surrealista, se declarou orgulhoso do fato de seu time ter tido mais posse de bola que o adversário… durante 15 minutos. Pior, essa loucura virou mantra glorioso nas redes sociais tricolores! Na verdade, o jogo não foi igual sequer no primeiro minuto porque, antes, o grande Marcelo, “a cria que voltou ao ninho”, entregou a rapadura e abriu as portas para duas verdades: o desnível técnico em relação ao City e o desequilíbrio emocional do time inteiro – Felipe Melo emitiu o atestado no fim.

Outro ponto que ninguém entendeu foi a desculpa dos jogadores tricolores comparando os 4×0 do City com o (mesmo) placar da vitória contra o Flamengo no campeonato carioca. Só pode ser fetiche, o Flamengo não tem nada a ver com isso. Até porque, quando perdeu o último mundial que disputou, o placar foi de 1×0 para o Liverpool – o mesmo time inglês em quem aplicou 3×0 e ganhou o seu mundial. Para não perder a viagem, os rubro-negros reagiram lembrando que nunca tomaram chocolate no torneio e continuam sendo os únicos cariocas campeões mundiais de clubes. E, vamos combinar, comparar o Mundial de Clubes com o Cariocão deve ter sido efeito retardado do calor infernal das arábias. Ou sequela da labirintite do olé do City.

Agora, vamos ser realistas: esse Manchester City de Guardiola seria trucidado pelo Santos de Pelé e o Flamengo de Zico. E não teria vida fácil diante do Botafogo de Garrincha ou da Academia palmeirense de Ademir da Guia.

4º Ato – Cada qual no seu cada qual A partir de 2024, a FIFA decidiu que essa estrovenga que o City acabou de ganhar perde o nome de Mundial de Clubes e vai se chamar Copa Intercontinental, cuja disputa se manterá anual. Dando aval ao inegável domínio europeu, o campeão da Champions League estará automaticamente classificado para disputar a final. O adversário será conhecido na disputa de um torneio entre os campeões regionais das outras federações. Uma prova inconteste de que o futebol do resto do mundo está cada vez mais distante.

A partir de 2025, a FIFA reinaugura o Mundial de Clubes totalmente reformulado, nos moldes de uma Copa do Mundo, programado para acontecer a cada quatro anos com 32 times na disputa. Além de todos os campeões continentais, os demais participantes serão classificados por meio de um ranking quadrienal. A primeira edição ocorrerá nos EUA (15 de junho a 13 de julho) e já estão confirmadas 19 equipes de diversos países (veja item abaixo).

5º Ato – Adeus às ilusões A CBF não poderia estar fora do elenco do espetáculo de horrores. “A Terra Prometida” de Carlo Ancelotti terminou com o técnico, a contragosto, na condição vexatória de uma “Viúva Porcina” da novela Roque Santeiro (“a que era sem nunca ter sido”). Anunciado pela figura inacreditável do então presidente Ednaldo Rodrigues como novo técnico da Seleção Brasileira a partir de julho de 2024, o italiano terminou salvo pelo gongo. Diante da intervenção determinada pela Justiça na CBF, sentiu-se livre da encrenca e tratou de antecipar a renovação do seu contrato com o Real Madrid até junho de 2026. No que fez muito bem. Para nosso azar.

Não precisa muito esforço para enxergar o óbvio que encheu os olhos de Ancelotti: a forma deselegante como o assunto foi exposto diante do mundo, o clima de oba-oba que domina a Canarinho, a presença desagregadora de Neymar, mesmo que esteja cada vez mais dedicado a atividades comerciais no mundo das frivolidades, a bagunça generalizada do futebol brasileiro, a desimportância que nossos jogadores “europeus” dão à Seleção e, last but not least, a insistente presença da CBF e de seus presidentes nas manchetes das páginas policiais.

Tanto que FIFA e CONMEBOL, que não são lá grandes referências no campo das boas práticas e imparcialidade administrativas, já anunciaram para janeiro/2024 visita sem qualquer cortesia em que pretendem cavoucar as entranhas da CBF e esclarecer os imbróglios relacionados com a destituição, determinada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), de Ednaldo Rodrigues, dos oito vice-presidentes eleitos junto com ele em 2022 e a nomeação de um interventor para convocar novas eleições.

Em carta assinada pelas duas entidades, os dirigentes não deixam dúvidas: “Nenhuma eleição deve ser convocada ou acontecer até que uma delegação de Fifa e Conmebol visite o Brasil no próximo janeiro para examinar a situação e discutir o assunto com as partes interessadas”. E o texto do documento vai mais além quando destaca o artigo 64 do estatuto da própria CBF, onde consta que “no caso de vacância nas posições da presidência, a única pessoa autorizada a representar a CBF e assumir as tarefas de presidente interino é o diretor mais velho” – o atual é Hélio Santos Menezes, que não foi destituído e acumula a direção das áreas jurídica e de governança. “Neste contexto, nenhuma outra autoridade além do citado no artigo 64 será oficialmente reconhecida pela Fifa e pela Conmebol”, afirma outro trecho da carta.

De tanto procurar sarna para se coçar, a CBF terminou numa sinuca de bico: não pode descumprir uma decisão do STJ, muito menos ignorar uma determinação da FIFA. Não é de hoje que qualquer criança sabe que a Velha Senhora do Futebol não aceita intervenção da Justiça comum em assuntos do futebol. Entretanto, a disputa de poder por uma cadeira que parece trazer junto um formigueiro colocou em campos opostos a situação comandada por Rodrigues e uma oposição que junta Ricardo Teixeira e Marco Polo del Nero. Sim, eles mesmos, defenestrados do futebol depois de uma série de penalidades judiciais.

A cena final deste ato é cômica, não fosse trágica: os representantes dos donos da bola informaram que desembarcarão no Brasil exatamente em 8 de janeiro – a data ficará registrada pela ameaça de um segundo golpe de riso. Afinal, não se deve levar em conta as ameaças de punição também emitidas pela carta assinada em conjunto por FIFA e CONMEBOL. O futebol brasileiro ainda tem grande peso comercial para ser colocado na geladeira por algum tempo.

Claro, uma suspensão como punição agora seria até conveniente e faria a festa da mídia pacheca. Não correríamos o risco de passar por situações vexaminosas como a da Itália, que ficou de fora – na bola – das duas últimas Copas do Mundo. Afinal, ainda podemos arrotar, cada vez mais por puro milagre, que somos o único país a participar de todos os Mundiais até hoje realizados.

Teríamos até a desculpa esfarrapada de usar o caso do México, punido em 1988 pelo escândalo de “gatos” (jogadores que diminuem as idades para participar de competições em que há limitações etárias) em times das categorias de bases. O resultado, as seleções (de todas as categorias) do país foram proibidas de participar das Olimpíadas de Seul 1988, Copa do Mundo Sub-20 de 1989 e Copa do Mundo 1990. E o prejuízo se alastrou pelo futuro porque, a promissora geração mexicana que brilhou na Copa do Mundo 1986 se perdeu no limbo da safadeza da Federação Mexicana de Futebol (FMF), que comandou a operação de adulteração de documentos dos jogadores para levar vantagem sobre os adversários.

Mas a comparação com esse caso para criar uma narrativa de vitimização ante o tapetão de uma vingativa FIFA é fajuta porque repetimos a mesma presepada mexicana e saímos solenemente ilesos. Basta lembrar os casos de Sandro Hiroshi (Sul-Americano Sub-17 de 1997), Bell (Copa do Mundo Sub-17 de 1995) e Anaílson (Copa do Mundo Sub-17 de 1997, que o Brasil foi campeão). A tangente de absolvição obedeceu a uma linha de raciocínio bastante interessante: os dirigentes brasileiros não teriam conhecimento da falsificação dos documentos, ao contrário dos mexicanos.

Epílogo Por enquanto, parece que o mais sensato é parafrasear o título do livro já clássico do jornalista Zuenir Ventura e, substituindo o ano de 1968, sapecar 2023, O Ano que Não Terminou.

É difícil imaginar que 2024 não será mais um tempo de ilusões aplaudindo mediocridades. Por isso, muita gente já anda preparando sorrisos amarelos para o ano-novo inteiro.

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Mundial de Clubes 2025 Já são 19 times selecionados para disputar o torneio, segundo os critérios estabelecidos pela FIFA. Palmeiras (Brasil): campeão da Libertadores 2021 | Flamengo (Brasil): campeão da Libertadores 2022 | Fluminense (Brasil): campeãos da Libertadores 2023 | Chelsea (Inglaterra): campeão da Champions League 2020/2021 | Real Madrid (Espanha): campeão da Champions League 2021/2022 | Manchester City (Inglaterra): campeão da Champions League 2022/2023 | Bayern de Munique (Alemanha): via ranking da Europa | Paris Saint-Germain (França): via ranking da Europa | Inter de Milão (Itália): via ranking da Europa | Porto (Portugal): via ranking da Europa | Benfica (Portugal): via ranking da Europa | Al-Hilal (Arábia Saudita): campeão da Champions League da Ásia 2021 | Urawa Red Diamonds (Japão): campeão da Champions League da Ásia 2022/2023 | Al-Ahly (Egito): campeão da Liga dos Campeões da África 2020/2021 | Wydad Casablanca (Marrocos): campeão da Liga dos Campeões da África 2021/2022 | Monterrey (México): campeão da Concachampions 2021 | Seattle Sounders (EUA): campeão da Concachampions 2022 | León (México): campeão da Concachampions 2023 | Auckland City (Nova Zelândia): campeão da Champions League da Oceania mais bem ranqueado

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